Cultura e Lazer

CHEIRO DE INFÂNCIA

Coluna: SEGUIMENTOS - por: Antonio Trotta - Jornalista, Escritor e Poeta - 06 de novembro de 2024

 

Na fazenda de meus tios, acordávamos bem cedinho, em bando, alvoroçados para disputarmos com os bezerros o primeiro leite do dia. Acordados pelos mugidos, despertávamos quem ainda sonhava e corríamos para o curral. Cada qual com sua caneca, seu açúcar e seu Nescau. Enfileirados, seguíamos os passos de quem ia à frente, pois poderíamos pisar em lugares não recomendados e os pés se enchiam de bosta de vaca.             Quando acontecia, a reação era imediata, os menores choravam, os maiores riam e a confusão chegava antes do sol nascer. O silêncio reinava em seguida, quando alguém avisava que as vacas, com o barulho, não dariam mais leite.

Então, a aventura prosseguia na maior naturalidade e satisfação. E quem se sujasse que fosse se limpando pelo caminho, esfregando os pés no mato, e que tomasse mais cuidado da próxima vez. Afinal, tínhamos algo por demais salutar nos esperando. A bela vaquinha nos aguardava para saborearmos do seu néctar branquinho e espumado, misturado com felicidade, tantas vezes repetida.

O curral ficava perto da casa, mas tínhamos que seguir o caminho iluminado ainda pela lua e as poucas estrelas, vencer os obstáculos e transpor enormes porteiras que eram abertas e depois fechadas pelo derradeiro do grupo. Quase ninguém queria ficar por último, pois tinha que se ocupar com a sua caneca ou copo e ainda sustentar o fechamento da porteira. Mas nada nos fazia desistir, nem o gado pelo caminho, nem aquele resto de sono que fora interrompido, nem mesmo o frio, a geada que nos fazia soltar, o tempo todo, fumaça pela boca e pelas narinas. Não havia obstáculo, apenas a vontade e o prazer de viver, a cada dia, todos os dias, aquela prazerosa aventura coletiva. Desfrutávamos, primos e primas, em plenas férias, a essência e a inocência da idade em alguns copos de leite tirado na hora, alimentando vidas.

Dividíamos o açúcar e o chocolate e aguardávamos ansiosos o momento de chegarmos até aos pés da vaca. Uns nem arriscavam tal aproximação, outros se esforçavam para tirar o leite e se sentirem vitoriosos e corajosos entre os demais. Na espera, ficávamos soltando fumaça pela boca, admirando o feito e sentindo a friagem que se mostrava na ponta vermelha dos narizes esfumaçados. Ao bebermos o leite de cada manhã, alimentávamos nossa infância e nutríamos nossas esperanças. Sabíamos que, quando queríamos uma coisa, tínhamos que buscar, enfrentando as dificuldades que iríamos encontrar pelo caminho. Juntos era mais fácil e mais divertido.

Quando volto à fazenda de meus tios, sinto gosto de infância. Nela a vida gargalhava e corria solta entre nós; nela havia cheiro de felicidade no ar.

 

Antonio Trotta – Jornalista, escritor e poeta

8 Comentários

  1. Querido Trotta!!
    Histórias se entrelaçam. Você me levou a minha doce infância. Vivi exatamente tudo que você escreveu aqui. A única diferença é que o nosso acompanhamento do espumante branquinho era Café e açúcar. E era meu pai quem preparava aquele leite espumante que mais parecia um milk Shake. Que delíciaaaa! Estou com lágrimas nos olhos e água na boca. Gratidão Vitalícia por relembrar algo tão valioso e que os jovens de hoje não conhecem! Somos privilegiados!

  2. Maravilhosa inspiração…
    A infância é a fase em que o mundo parece infinito e repleto de mistérios a serem descobertos. É o tempo das primeiras aventuras, dos sonhos sem limites e da inocência que transforma qualquer experiência em algo mágico. Na simplicidade do olhar infantil, cada detalhe vira uma história, cada sorriso, uma celebração. Acho lindo quem tem essas lembranças…as minhas, perderam-se no meio do caminho.

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