Cultura e Lazer

CRÔNICA: A vida é isso?

Kerley Carvalhedo

A vida é isso?

Ele cresceu ouvindo dizer que “tempo é dinheiro”. Que para vencer era preciso ceder às exigências da vida contemporânea: é preciso ser magro, atlético, competitivo, rico, competente, correr atrás do sucesso, da fama e se destacar. Ele acreditara nisso. Começou sua busca pela tão sonhada vida de sucesso cedo, logo nos primeiros anos da adolescência. Tinha que trabalhar, terminar os estudos, casar, ter filhos, construir seu legado e deixar uma herança. Antes mesmo de terminar a faculdade já não fechava cinco horas dormidas por dia.

Terminou a faculdade, casou-se teve filhos e conseguiu juntar grana e montar seu próprio negócio; próximo dos quarenta estava a um passo de realizar seu grande sonho: ter mais tempo para ficar junto à família. Conseguiu boa parte do que tanto queria, menos o almejado tempo.

Ele, que ao cair da noite estava em casa, agora só chegava quando todos já estavam dormindo. As demandas da sua empresa eram cada vez maiores, passava horas em seu escritório resolvendo assuntos financeiros, queria ver os lucros aumentarem (os números da sua conta bancária também).
Sua esposa não reclamava muito, tinha uma boa vida, contudo sentia-se uma mulher solitária. Quando questionado por ela, dizia ele que todo aquele sacrifício era para ter uma vida mais digna e desfrutar cedo do trabalho com ela e os filhos.

A ausência no meio familiar ficou cada vez mais frequente, justificava que trabalhara para lhes oferecer uma vida boa e digna. No começo dos negócios, sentava-se à mesa duas ou três vezes por semana para os jantares, mas com a nova rotina de empresário bem-sucedido mal visitava a luxuosa sala do jantar construída para um grande número de pessoas.

Ampliou sua fortuna, construiu um império, no entanto perdera os primeiros passos do filho, a primeira comunhão da filha, o casamento da primeira neta, também perdera o afeto dos pouquíssimos amigos, que falivelmente buscavam tê-lo por perto.

Embora já tivesse dinheiro suficiente para viver bem o resto da vida, nada o desacelerava. Durante uma crise financeira no país sua empresa foi razoavelmente afetada – isso agravou seriamente seu quadro de insônia. Passou a dormir bem menos que o habitual. Sua rotina cansativa se repetia: acordava cedo, dormia tarde, alimenta-se mal, tinha péssimos hábitos saudáveis.

Exaurido pela a agitação da cidade comprara uma chácara, longe do centro urbano para ir ficar recluso quando quisesse descansar. Lá construiu uma pequena capela em homenagem aos seus falecidos pais, para onde seus restos mortais foram levados. A capela passou e ser o seu lugar de refúgio. Sua mulher sabia onde encontrá-lo quando seu telefone não desse sinal nenhum.

O velho homem dizia que trabalhava incansavelmente para poder ter mais tempo e dormir um pouco mais. Ninguém sabe ao certo se ele era um homem feliz ou era apenas um infeliz endinheirado. Seu tão sonhado desejo não demoraria a se realizar. Em casa, depois de um intenso e exaustivo dia de trabalho, o homem deitou-se, e já pensando no dia seguinte, dormiu e nunca mais acordou – seu sonho de dormir um pouco mais se realizou: seu corpo foi sepultado na capelinha onde ele e seus pais dormem profundamente.

Kerley Carvalhedo é cronista e escritor. É membro correspondente da Academia Caxambuense de Letras. Começou sua carreira no jornalismo em 2011 no jornal ‘DiárioRS’. É autor de livros, entre eles o livro de crônicas “K Entre Nós” sua obra mais conhecida.

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