Cultura e Lazer

CRÔNICA:

De: Kerley Carvalhedo / Para: Helson Bezerra

Querido amigo, escrevo-lhe com a sensação de que devo contar-lhe tudo, sem modéstias, sem ocultar nada.

Antes de tudo, quero lhe dizer que sua fama de bom profissional foi tão grande que todos por aqui já sabem quem você é. Não falo com excesso ao afirmar que todas as gentes de perto e povos de longe ouviram falar bem de você. E isso porque sua profissão e sua essência humana fazem de você um grande homem.

Sei que devo contar-lhe, atenuar sua curiosidade, e dizer-lhe que seus admiradores, querendo dar-nos a utopia de que você ainda se encontra entre nós, inauguraram uma Unidade Básica de Saúde em sua homenagem, na Travessa W Três, na Cohab, não tão distante de sua casa, na cidade de Tucuruí.

Foi certamente, uma homenagem linda e muito merecida amigo, diante de tudo aquilo que você deixou como legado. Agora, você está eternizado não apenas no coração dos que o conheceram, mas na vida de muitos que procuram esse local em busca de solução para seus problemas de saúde.

Dizem que sei muito e, modéstia à parte, é claro que sei, e somente sei muito porque nunca conto tudo que sei.

Amigo, desde sua partida, muita coisa mudou, irei atualizá-lo de alguns fatos desses últimos anos.

Sabe, amigo, coisas horríveis têm acontecido por aqui; em dezembro de 2019, o mundo foi alertado sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Um tipo de vírus não identificado antes em seres humanos. Não demorou muito, e, uma semana depois, em janeiro de 2020, o novo Coronavírus estava entre nós, causando angústia, desespero, aflição, insegurança e muito medo.

O vírus foi batizado por nome COVID-19, porque ainda em 2019 surgiram os primeiros casos divulgados, naquele momento não tínhamos noção do que viveríamos nos próximos anos.

E o que parecia ser apenas uma epidemia, na verdade era uma pandemia que se alastrou e ainda se alastra invisível e silenciosamente pelo planeta a ameaçar a sobrevivência da espécie humana.

Amigo, você sendo da área da saúde, devo dizer-lhe que a ciência e os laboratórios do mundo inteiro estão numa corrida incessante em busca de uma solução, um antídoto que possa de fato aniquilar de vez esse maldito vírus, mas infelizmente, ainda não temos definitiva a tal solução e, lamentavelmente, o mundo continua a padecer.

É amigo, não tem sido fácil as coisas por aqui. O maldito vírus dizimou milhões de pessoas em todo o planeta Terra. Ficamos meses enclausurados em nossas casas. Submetidos à solidão absoluta, que, para mim foi absolutamente tranquilo; o meu cotidiano continuou preservado. Por vezes pensei que estivéssemos voltados à uma clausura dos mosteiros medievais. Ficamos privados da liberdade, do pão que nos faltou, e agora em uma quase “pós-pandemia” ainda nos falta.

Caro amigo, é crítica o momento atual da civilização brasileira. Confesso-lhe que nossas amadas cidades e o Brasil mudaram muito desde que você nos deixou em 2018, muitas coisas aconteceram, inclusive até eu mudei, agora moro em outra cidade, em outro estado.

Helson, meses depois de sua partida, lancei aquele livro de crônica que tanto falei para você, além de uma crônica exclusiva em sua homenagem, dediquei-lhe o livro em sua memória. Não poderia permitir que você fosse esquecido, por isso o imortalizei nas páginas de um livro e dos jornais.

A tão esperada homenagem da Câmara Municipal de Breu Branco aconteceu, nela pude homenageá-lo através do meu discurso, tal feito expressei o seu desejo de estar conosco naquela memorável cerimônia, como tantas vezes você afirmou que estaria.

Também me recordo o dia que marcamos para tomar café na calçada da minha casa, à noite. Por motivos de imprevistos, você apareceu, mas pouco demorou, fiquei parte da noite na companhia solitária de uma xícara de café. Pediu-me que regressasse à casa, que naquela noite você não poderia ficar mais tempo e nem voltaria logo. Não sem antes despedir-me com um abraço, um único abraço, na verdade o último abraço. Naquele instante senti tanta ternura, quis que não fosse embora, mas sabia que um dia muitos reconheceriam sua grandeza. Quantas aventuras contamos ao sabor dos muitíssimos tempos de amizade.

Amigo, ando tão deprimido, o que vem se tornando cada vez mais comum. De repente, quando tudo parece que chegou ao fim, vem outra surpresa; agora variantes do vírus mortal surge como erva daninha, pouco sabemos sobre essa era pandêmica. Assim como os vírus, os casos de racismos, os discursos de ódio e a intolerância também se multiplicaram no país. Os nossos teatros, os grandes músicos, e parte da nossa cultura tem suportado grandes represálias. É uma angústia terrivelmente dolorosa. O terror tem sido eminente nos últimos anos, até parte da nossa história se perdeu em um incêndio de grandes proporções que atingiu a sede do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Os rastros deixados foram sendo apagados, viramos uma sociedade à mercê do caos.

Embora não seja inaugural esses atos trágicos, contudo, estamos sofrendo inibições e restrições à cultura. De algum modo, o povo tem ficado órfão da educação e da cultura canônica, o que é de fato lastimável.

O Brasil que sempre foi um centro produtor e reprodutor de maravilhas da cultura, agora vem padecendo rigorosamente –, estão querendo considerar a cultura brasileira como algo ofensivo. Governos pregoam que a nossa história, de algum modo, nas suas variadas expressões encarna-se ofensas aos valores brasileiros. Que nós, produtores de cultura, obscurecemos aos valores da família, aos valores do cotidiano, aos valores do sexo, aos valores de qualquer categoria social inerente ao humano. Dizem por aí que a cultura, de algum modo, nela se concentrava o maligno, estava o mal que ofendia a sociedade brasileira. Isso tornou-se um desastre por aqui.

Eles dizem isso, amigo, como se a cultura não fosse uma coisa quase arqueológica, de uma consciência nacional. Eu digo sempre –, só se pode entender o Brasil por meio das ações culturais. Eu e você chegamos a conversar sobre isso e sobre um tal “Salvador” da pátria, lembra? Pois é, esse tal “Salvador” chegou como quem é um soldado em defesa da causa brasileira, dos valores brasileiros, da religião brasileira, daquilo que estaria “ofendendo” o Brasil.

Mas, amigo, os atos foram insensatos, impensados e injustos, totalmente injustos. Para salvar este país, é preciso entender que precisamos zelar pela cultura. Não há Brasil sem os seus grandes. O Brasil foi se construindo pelos grandes intelectuais, pelos grandes compositores, pelos grandes pintores, pelo folclore brasileiro, pelas cantigas, pelo samba. Tudo isso é o Brasil, aliás, é muito mais Brasil do que esse tal “Salvador” da pátria. Nós somos um produto da cultura que vem desde sempre.

Talvez me exceda, perco a dimensão do que estamos vivendo neste exato momento, mas de uma coisa eu sei, por aqui está todo mundo meio louco, igual a protagonista Alice no País das Maravilhas. A luta por um país melhor e mais justo tem deixado a gente assim, numa corrida desenfreada, há escassez de tudo, inclusive civilizatória.

Nós da cultura, seguimos resistindo, como você o fez na sua profissão, mesmo com todos os desfalques e precariedades nelas contidas. Sigo fiel à arte, à língua, aos os sentimentos cívicos. Juro que vou lutar um pouco mais para melhorar o meu mundo e o meu país.

Aqui fico, querido Helson, agora em terras longínquas, mas sem renunciar este país que segue lindo, mas sofrendo os efeitos devastadores da peste, da violência, da corrupção e da fome. Até nosso próximo encontro. De Kerley.

 

Kerley Carvalhedo é cronista e escritor. É membro correspondente da Academia Caxambuense de Letras. Começou sua carreira no jornalismo em 2011 no jornal ‘DiárioRS’. É autor de livros, entre eles o livro de crônicas “K Entre Nós” sua obra mais conhecida.

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