A força do coletivo
Acaba de ser lançado o primeiro álbum da cantora baiana Kell Santos, intitulado Raiz e folha: O cancioneiro de Zeh Gustavo (independente).
Eu ainda não ouvira a moça cantar, nem sequer havia dela ouvido falar. Claro que a condição de ser seu primeiro disco me atraiu. Respeito e solidariedade me movem em direção às boas surpresas vindas dos iniciantes.
Mas eu conhecia Zeh Gustavo desde quando ele morava no Rio de Janeiro. Ainda não era um cancionista, mas um poeta cujas palavras me sensibilizaram… (Lembro-me que ele batalhava para lançar um livro.)
Naquela época (2004), eu frequentava o grupo autodenominado A Sociedade dos Poetas Vivos, que se reunia aos sábados de manhã para trocar ideias. Compareciam o saudoso Zé Rodrix, o jornalista José Nêumanne, o psicoterapeuta Humberto Mariotti e o saudoso poeta Mário Chamie, criador da poesia “Praxis”.
Num sábado qualquer, levando as poesias do Zeh Gustavo debaixo do braço, li uma das poesias para o grupo. Senti que os olhos de Mário Chamie brilharam. E ele falou: “Direto! No ‘olho da mosca!”’ – era como ele costumava saudar o que lhe agradava. “Estes versos são exatamente a minha poesia ‘Praxis’!”. Logo depois a editora Escrituras publicaria a Idade do Zero, do Zeh Gustavo poeta.
Esta lembrança trouxe até mim, para o hoje, Zeh Gustavo cancionista e sambista. Pois foram as suas primeiras canções, concebidas solo ou com parceiros de letra ou de melodia, que a cantora baiana Kell Santos gravou agora. (Para além de poeta, Zeh segue lançando livros e cultivando a música em seu horizonte.)
Cada qual no seu canto, Zeh e Kell se radicaram no Rio, entre os morros do Fallet e do Fogueteiro, no bairro de Santa Teresa. A garotada ia lá para ouvir o que de mais novo nascia na música brasileira.
Depois, Kell retornou à Bahia e Zeh fixou-se no Mato Grosso. Apesar da distância física o trabalho nasceu coletivo, com a voz marcante de Kell, o trabalho autoral do poeta-sambista Zeh Gustavo e os arranjos e a direção musical de Daniel Delavusca.
O instrumental arregimentado lança fogo pelas mãos e a emoção vinga. Com instrumentos hoje presentes nas rodas de samba – cavaquinho, violão de seis e de sete cordas e percussão –, Delavusca deitou e rolou.
Em meio à diversidade da música brasileira, o repertório de emboladas, sambas, frevos e canções de Zeh Gustavo brilham na voz de Kell, que canta expressando sagacidade, afinação e bom-gosto.
Destaque para os sambas “Morrinho da Conceição” (Mário Junior e Zeh Gustavo), com levada de samba de enredo, “Mar Bravio” (ZG), “Raiz e Folha” (ZG), o samba amaxixado “(Des)Embarque” (Marcelo Bizar e ZG), o samba “Vida Nem Volta” (Renan Sardinha e ZG) e a cereja do bolo, uma canção inédita do saudoso Sérgio Ricardo.
Assim, a música brasileira resiste. Pela multiplicidade de seus compositores e intérpretes anônimos ou consagrados, os que se lançam a ela têm o entusiasmo das orgias, peculiaridade dos que confiam na sua própria musicalidade.
Sobre o Colunista:
Aquiles Rique Reis, niteroiense, logo se dispôs à vida. No MPB4 desde 1965, foi como se tivesse nascido para sempre cantar e muito sentir as dores do mundo, que são também suas. Hoje, ele canta, e há quinze escreve sobre música, com isso se encontra e vive.