ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRASCultura e Lazer

ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRAS

Maria do Carmo Rodrigues

A coluna de hoje é com: Maria do Carmo Rodrigues

Bonecas de milho

(Maria do Carmo Rodrigues)

Contar sobre as minhas bonecas é fazer referência às mais lindas bonecas de milho, flores do milharal, onde eu podia escolher entre tantas, a que eu quisesse ou poderia escolher todas para serem minhas sem tirá-las do berço a que pertenciam, que era o pé de milho.

Exalavam um perfume inconfundível de vida, característico da natureza delas mesmas, que ainda se mantém presente e não me sai da memória. Seus cabelos macios e sedosos variavam tonalidades desde o amarelo claro, rosa, vermelho, grená atingindo o tom envelhecido marrom escuro, tom seco. As mocinhas/ espigas, às vezes cacheadas, outras, lisas. Algumas – mais vaidosas – pareciam ter saído do salão de beleza, exibindo variados penteados.

Eu passeava pelo milharal e conversava com todas elas enquanto a minha irmã escolhia as bonecas que seriam dela. As minhas eram inconfundíveis, lindas! A cada dia surgiam novas personagens, uma e outra lindas em suas peculiaridades, enquanto outras envelheciam naturalmente, cumprindo a ordem natural do tempo de colheita.

Minha mãe permitia que eu escolhesse uma delas para brincar em casa, porém ela não resistia ao calor das mãos. Murchava e seu cabelo ficava fosco, perdia o brilho, envelhecia, à medida que era tocada, manuseada, como se denunciasse uma ação contrária à sua natureza exuberante. Ela e outras permaneciam belas no pé de milho.

Era melhor mantê-las como princesas nos pés de milho.

À noite, ainda antes de adormecer, ficava pensando naquelas princesas, na arquitetura e perfeição da natureza, na perfeição da criação de todas as coisas e direcionava o pensamento àquelas personagens, em como elas se protegiam do frio, do sereno, dos bichos, grilos, formigas, lagartas horrendas ou até mesmo dos seus medos…

Pela manhã, após o café, ainda de pijama de flanela, corria para vê-las como amanheciam, tão lindas e cheirosas, tão cheias de prosa.

Elas duravam alguns dias; dias esses que eu não sabia contar. Depois envelheciam e logo já viravam espigas de milho verde, num processo tão natural para mim. Era a mudança de fase. Era amadurecer, segundo minha mãe.

Enquanto isso, eu buscava outras e outras bonecas mais lindas ainda, até cessar a safra das lindas bonecas de milho naquele ir e vir de pés enfileirados do milharal.

Era chegada a hora do revezamento com as bonecas de pano.

Minhas bonecas de pano eram feitas de pedaços de pano velho retorcido. Algum pedaço de lençol que já não servia para uso. Minha mãe enrolava-o, torcia, amarrava, embrulhava num cueiro, colocava-lhe na boca uma enorme chupeta vermelha de anel branco. Era o que bastava para ser a minha boneca amada, cuidada, acalentada, até a próxima safra de milho, quando chegaria as mais lindas bonecas no milharal.

Nesse ínterim, conheci uma boneca de papel marchê. Minha mãe falava que era de papelão. Era uma boneca pardacenta, com vestidinho de papel crepom verde escuro. Resolvi dar um banho nela para ela clarear, pois pensei que ela estivesse suja. Coloquei-a numa bacia de água morna para o banho com sabonete. Ela amoleceu, desmaiou, desmanchou aos meus olhos… ficou sem conserto – para ela e para mim.

E a boneca morreu no banho… Nunca mais vi uma boneca daquelas. Minha mãe a comprou na maior loja da cidade. Nessa loja vendia de tudo… até bonecas que morrem no banho…e isso me deixou muito triste.

Outras vezes, eu brincava com as bonecas das minhas sobrinhas. Apesar de serem sobrinhas, tínhamos a mesma idade. Esses assuntos de família grande, os filhos dos primeiros filhos acabam tendo a idade dos tios.

As bonecas delas eram bonecas bonitas, cacheadas, olhos azuis que abriam e fechavam, bastava um ligeiro balançar. Lindos eram os seus vestidos de renda. Todas com sapatinhos brancos. Ficavam em cima da cama delas, mas eram bonecas que Papai Noel trazia para as meninas da cidade. Elas eram meninas da cidade. Ele nunca ia lá na roça para levar bonecas para as meninas da roça, por isso não adiantava colocar sapatinhos atrás da porta. Papai Noel não conhecia roça, nem as bonecas de lá. Ele gostava mesmo das meninas da cidade para quem ele escolhia levar bonecas bonitas e de cabelos cacheados.

Sabia disso, porque quando íamos chegando de charrete para a missa das 10 horas, no dia de Natal, as meninas da cidade estavam do lado de fora das suas casas, felizes com suas bonecas de sapatinhos brancos e essa atitude revelava e comprovava que minhas sobrinhas também estariam no quarto com as suas bonecas lindas trazidas pelo Papai Noel. Como naquele dia as bonecas eram novinhas, ainda não eram brincadas, eu não podia pegar. Só podia ver de longe, para não sujar.

Certa vez, ganhamos 2 bonecas iguais. Uma para mim e outra para minha irmã mais nova. Elas vieram embrulhadas num papel de presente. Elas eram peladas, duras e não fechavam os olhos. Nem de longe se pareciam com aquelas do Papai Noel.

Não tinham cabelos, mas tinham um coque que jamais desmancharia.

Gostei delas. A primeira coisa a fazer foi cobrir o corpinho da minha com um pano. Dei-lhe o nome de Marluce que era o nome da amiga de minha irmã mais velha. Fiz doce de leite para o batizado dela. Passei a sentir o cheiro de uma boneca de verdade, de fábrica, da cidade. Confidenciávamos nossas aventuras. Minha irmã enciumada sempre queria saber o que eu falava com aquela boneca…

Nunca vi uma loja de boneca na cidade como se vê hoje. Acho que naquela época era artigo proibido para crianças.

Acredito que bonecas deviam viver escondidas nas caixinhas de veludo para preservar a sua beleza e desta forma eu não pegaria, pois eu aprendi, em minha doce ingenuidade, que se eu a pegasse no colo ela poderia sujar…

Enquanto isso, chegava a época do plantio de milho, mais uma estação de alegria, de cores, perfumes e beleza. Era hora de brincar com as minhas mais lindas bonecas de milho no milharal.

Academia Caxambuense de Letras – fevereiro de 2022

Comentários

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo