ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRASCultura e Lazer

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Fal Vitiello de Azevedo

A coluna de hoje é com Fal Vitiello de Azevedo

Coltrane transformou o saxofone num novo instrumento, que alcançava uma nova dimensão. Quando eu era muito nova, a minha mãe punha Coltrane preu ouvir e eu odiava. Porque jazz, assim como o Erico Verissimo, a gente precisa estar mais velho e, vá lá, mais sofrido, para entender. Quando eu estava com quarenta e poucos anos, ou seja, velhusca e muito, muito sofrida, traduzi para o português um livro chamado Kind of blues, que fala sobre este disco específico de Miles Davis, outro jezêro genial. Pois Coltrane participou das gravações de Kind of blues, aprendi durante a tradução. E me lembrei da minha mãe insistindo praqueu ouvisse esses caras. E só então ouvi e fui capaz de entender.

[uma nota engraçadinha: quando Coltrane resmungava que nalgumas improvisações nem ele sabia como acabar com aquilo, Miles Davis, que era sério pacas, rosnava: “Experimenta tirar o saxofone da boca”)
Os dois avós de Coltrane eram reverendos. Um deles, era o líder da Igreja Metodista Africana Episcopal do Sião, e foi lá que Coltrane cresceu, vendo os pais tocando e cantando. O pai dele morreu cedo, a barra pesou e ele se perdeu e se encontrou durante a vida, como todos nós.
Em 1955, Miles Davis, recuperado das drogas, contratou Coltrane pra tocar com ele. A droga de Coltrane era heroína e nada é fácil com heroína. Coltrane saiu e voltou pras diferentes bandas de Miles durante os anos seguintes. Davis e Coltrane tocaram juntos um monte de vezes e brigaram demais, demais também, como sucede com aqueles que se amam.

Pela vida, Miles Davis xingava Coltrane dum tudo – sem deixar de chamá-lo pelo apelido carinhoso, “Trane”.
No fim de sua curtíssima vida de 40 anos, Coltrane ainda chamava Miles Davis de “Professor”.
Ah! Existe uma Igreja chamada St. John Will-I-Am Coltrane African (nome traduzido pra Igreja Ortodoxa Africana Saint John Coltrane), que adora Coltrane como um santo. Talvez a única religião que eu venha a considerar um dia.

Coltrane, que tocou com gente como Dizzy Gillespie, Mal Waldron e Thelonious Monk, passou a vida toda de emprego em emprego, de dose em dose, de solo em solo. Experimentando. Procurando excelência, procurando um som que não sabia definir, mas no qual acreditava profundamente. Era um desses caras espirituais, que creem, não num deus, mas na força das cousas. No que virá, no que tem de ser. Eu, que não creio em nada, creio nessa busca da expressão mais exata, mais perfeita, intangível, que está a meio centímetro da ponta do dedo e que nunca se alcança. Coltrane acreditava que a música é uma coisa só que nos abraça a todos, que está em tudo que e que flui sempre e sempre. Aqueles solos imensos sem fim, multifônicos, aquela mistura que vai, nota a nota, encontrando um fio, foi a tradução dessa crença, desse estilo, desse talento imenso, dessa busca que nunca, nunca termina. Nunca.

Coltrane morreu de câncer no fígado aos 40 anos. O filho dele se chama Ravi Coltrane e é um músico da pesada.
Coltrane está em todas as partes, em todos nós, nas músicas que ouvimos, nos sons que nossos instrumentos produzem, porque ele queria que fosse assim. Então, é.

 

Academia Caxambuense de Letras – novembro de 2021

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