ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRASCultura e Lazer

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Esther Lúcio Bittencourt

A coluna de hoje é com Esther Lúcio Bittencourt

Não conheço em meus quase 80 anos uma pessoa tão erudita como tia Valentina, tia Valente.
Pequena, magra, rosto redondo de pouca fala. Contam que após a gripe espanhola ficou surda. Por conveniência, afirmo eu. Nossas conversas se davam em voz baixa. Tia Valente ficou solteira, morava na casa de minha avó materna. Tinha no quarto sua máquina de costura. Já que não ouvia, para falar com ela precisava ser aos berros. Os outros, não eu. Não sei o que costurava, mas o fazia. Minha avó Martha Hedoviges e tia Hulda eu sabia que seus colarinhos de camisa masculina eram famosos. Mas não era na casa delas que tia Valente morava. Era na casa da vovó América. Ao lado do quarto dela morava tia Beatriz, que também ficou solteira. Eram almas puras, delicadas.

Quando passava pelo quarto de tia Valente, pelo corredor de fora onde havia muitas plantas ,sempre encontrava uma romã para mim. Uma pintura sobre o parapeito da janela, vermelha, madura, com a casca entreaberta. Hoje me pergunto como ela me abastecia do que eu mais apreciava, mesmo fora do tempo? Gostava de conversar com ela e muito aprendi. Quando vovó morreu ela e tia Beatriz, que chamavámos Beata, tentaram substituir vovó. Cantavam, liam, me davam comida na boca contando histórias arrepiantes. Tia Beata falava sempre do menino Jesus. Já tia Valente, contava a história de clarinha cuja madrasta a colocara no porão da casa para apodrecer.

Tinha outra, a de uma menina que foi enterrada viva no quintal da casa pela madrasta. O pai dela chegava de viagem e sempre ouvia a música que a menina, quando viva, cantava e uma touceira de capim amarelado estava enorme. Ele mandava limpar e o capim crescia. Até que mandou cavar no local e encontrou sua filha viva. Separou da madrasta, claro. Com Tia Valente aprendi a apreciar poesia e canto. Ela tocava violino, piano e porfiava em me alfabetizar nas partituras. Mas tia Débora, sempre atenta, proibiu. Precisava estudar coisas do colégio.

Bem, o tempo passou. Cresci, casei, descasei. Tia Valente morava então com minha mãe. Entre a Reitoria e o JB meu carro corria até lá. Perdia o almoço mas tia Valente me ensinava japonês, contava histórias que hoje leio nas Sendas de Oku, de Matsuo Bashô, me ensinou a gostar de haicais, das gravuras japonesas…
Um dia amanheceu morta. A mulher que rompeu todas as convenções de seu tempo, século dezenove, se bastava e só ouvia o que desejava.

Um detalhe: não gostava de Venina Pantoja, agregada da minha avó porque a considerava namoradeira demais. Eu, de minha parte, amava Venina e sua coleção de réstias de cebola e alho que enfeitavam seu quarto. Ela acreditava em vampiros.

 

 

Academia Caxambuense de Letras – outubro de 2021

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