ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRASCultura e Lazer

ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRAS

Kerley Carvalhedo

A coluna é com Kerley Carvalhedo. Acadêmico correspondente.

Kerley Carvalhedo é um escritor e cronista brasileiro, ocupante da cadeira 27 da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense, também é membro corresponde da Academia Caxambuense de Letras/MG. É Vencedor de vários prêmios literários, entre eles a Medalha Mérito Cultural “Poetizar o Mundo” pela revista Carlos Zemek – Curitiba/PR. Vindo a ser reconhecido a nível nacional e internacional.

 

“Não é preciso pressa na literatura. Um romance, uma crônica, um conto, são como uma gravidez: aquilo fica dentro de você, crescendo, incomodando, até sair.” (Rachel de Queiroz)

Dada a importância à crônica, gênero literário importante que consagrou diversos escritores de renome no país, faz-se necessário dialogar sobre sua realidade no século XXI.

Com o avanço das tecnologias e um forte endurecimento nos investimentos públicos para as artes, a cultura e a literatura, vemos uma grande preocupação com o futuro do livro e da publicação. Mas, nesse cenário preocupante, vemos também o brilhantismo e o trabalho dedicado de escritores como Kerley Carvalhedo que nos deleita com a beleza de sua obra, o livro K Entre nós, que revela a força e a resistência de jovens escritores que não deixam a literatura morrer.

Kerley é escritor e cronista. Seu trabalho pode estar em uma coluna de jornal, em um livro para adultos. Um bate-papo conduzido por Lucas Ravacci, Kerley fala sobre seu começo na profissão, os desafios de retratar a arte no atual governo e muito mais. Confira o papo completo:

Kerley, como você vê o futuro do livro com o avanço diário das tecnologias?

Um futuro incerto, assim como o futuro das editoras, das gráficas e dos profissionais da área editorial, como se sabe atualmente, devido ao mundo cada vez mais digital. Este é um assunto que divide opiniões, embora, com o advento da internet, muita coisa mudou, não sabemos se para melhor, quando se trata de leitura. Recentemente li um artigo da neurocientista cognitiva americana Maryanne Wolf, concedido à BBC News Brasil, no qual ela explica que “ler é algo que precisa ser criado no cérebro, e o circuito vai refletir a linguagem que a pessoa usa, seu sistema de escrita, e o meio pelo qual lê.” Ou seja, os hábitos digitais atualmente contribuem para uma leitura pouco aprofundada, em que apenas rapidamente passamos os olhos por diversos textos, o perigo, segundo Wolf, é que desaparecem a habilidade de entender argumentos complexos, sejam eles em documentos ou em um livro, etc.  Isso pode prejudicar a maneira como lidam com a literatura, e com a forma como a criamos. Eu espero que as pessoas não se tornem tão aceleradas, ao ponto em que deixem de se aprofundar, digamos assim, no que é importante. Esse é, sobretudo, o grande desafio que os meios virtuais elevam: a profundidade com que as pessoas são capazes de abordar determinados assuntos. O livro, com essa cara de “antiquado”, companheiro do ser humano há séculos, aparentemente se mantém quase intacto ao longo de toda essa história, apesar dos digitais. Não sei os outros escritores, entretanto, ainda sou adepto do livro físico, então espero que ele sobreviva.

Outro ponto que acho interessante falar é sobre os seus processos de criação literária, me conta; suas inspirações se dão de forma natural, na agitação diária, no silêncio ou nas vivências? Como você vê os processos de solidão na criação literária?

Não há como determinar que minhas inspirações venham de um só lugar, elas vêm das minhas vivências, do meu cotidiano, da minha solidão, sobretudo, das minhas leituras. Busco referências e inspiração em romances, músicas, pinturas ou nos jornais diários que leio todas as manhãs. Tudo que é humano me interessa, portanto, minha literatura é feita de fragmentos que compõem o todo. Mas é na solidão que nascem os textos, costumo elevar o máximo da minha criatividade somente quando estou sozinho. A companhia, muitas vezes, pode prejudica o processo de criação. O escritor deve estar pronto a abraçar solidão e responder a ela em seu íntimo, pois parafraseando Bachelard: “A escrita é minha solidão, a escrita é minha vontade de solidão”.

Você convive com grandes escritores como Nélida Piñon, Antônio Torres e outros, como você classifica a obra desses importantes escritores, você acha que a Academia Brasileira de Letras dá maior importância as obras deles? Você se simpatiza pela Academia Brasileira de Letras?

Gostei desta pergunta! Sim, tenho um enorme carinho por estes escritores, sobretudo, a Nélida Piñon, que é uma amiga querida, grande escritora brasileira. Tenho profunda admiração por esta imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Não acho que a ABL tenha preferências somente por estes autores. A Academia tem um papel muito mais importante do que simplesmente ser um clubinho fechado. A função da ABL, é ser a grande guardiã da Língua Portuguesa. Essa língua que tenho tanto afeto. Não só por proteger a língua culta Portuguesa, mas a língua em todas as suas vertentes, todas as suas variantes, tudo o que se produz como literatura em Língua Portuguesa. Nós temos que defender o que se escreve na nossa Língua. O texto é uma criação, é preciso que nós tenhamos a coragem de entender a amplidão da nossa língua materna, que realmente cobre todas as instâncias verbais, invenções, todas as anormalidades linguísticas, esse é o mérito da língua portuguesa. Você vê que ela se serve a todas as buscas, a todas as perseguições criativas. Não há como não amar essa língua, língua generosa, portentosa, língua que designa o mundo, diz que o mundo é. Sem ela não saberíamos que o mundo é largo, que algum momento começou a partir das designações da língua. Essa língua que é mágica, luminosas, policrônica, também é tímida quando necessário, voluptuosa quando convém; é uma língua que expressa todos os sentimentos humanos.

Você se considera um escritor engajado?

Não sei se sou um escritor politicamente engajado. Sou engajado no drama humano, no drama existencial. Esse é meu engajamento. Sou engajado na literatura, na vida prática. Sou engajado na questão da ética, da compaixão, da empatia, da fraternidade. O meu caminho na literatura sempre foi tentar executar as ideias que eu tinha vontade de realizar e aceitar as cobranças que viriam por expor estas ideias. Sinceramente não sei responder se sou um escritor engajado na política, embora eu esteja sempre defendendo as causas humanas, combatendo as desigualdades sociais, enaltecendo os valores humanos. Durante um período, eu fui mais engajado, isso foi mudando ao longo do tempo. Hoje vejo a vida e a escrita de outra maneira. A vida me levou para essa fusão.

Pra que serve a literatura em sua opinião? Sobretudo no contexto brasileiro?

Aparente não serve para nada. Não acredito que a literatura mude as coisas. Sou um pouco cético quanto a isso. Volto atrás, pode às vezes haver um livro, digamos, em que, de repente, a juventude se inspire naquilo e mudar alguma coisa. Mas em geral sou cético, porque literatura é arte, e arte não tem grande finalidade na prática. A arte é para fazer o ser humano pensar, se emocionar, refletir… inclusive sobre as desgraças do mundo. Claro, a arte não é para se alienar, não acho que ela deve ser alienante, mas não acredito que escritores possam mudar o mundo. É claro que existem aqueles escritores que têm uma influência enorme, como por exemplo, a escritora Simões de Beauvoir no movimento feminista, como os românticos, os existencialistas e por aí vai. Repito, não acredito que haja uma finalidade prática na literatura, porém, um bom livro abre minha cabeça para coisas que antes eu não havia pensado, despertando-me emoções que até então nem sabia que eu era capaz de ter. Ajuda-me a conceber uma visão do mundo que eu não tinha. Há livros que foram muito importantes, sem dúvida. Eu tenho muita esperança na literatura, porque ainda tenho esperança na humanidade. Tenho a convicção de que a literatura é a comprovação da maturidade humana.

Assim como a cultura e as artes, você acha que a literatura vem enfrentando um momento difícil de desvalorização, desrespeito, desinteresse e baixos investimentos?

Penso que talvez esteja sendo desvalorizada, mas isso se deve ao Estado brasileiro que foi e continua sendo irresponsável, e de certo modo, nos manteve nesse esmaecimento intelectual. Que a educação no Brasil é extremamente precária, isso nós já sabemos. Agora, com toda essa desvalorização, muito me impressiona quando as pesquisas apontam que está aumentando o índice de leitura. Pode ser que tenha aumentado o índice de curiosidade também por leitura e as pessoas, sem pressa, estejam lendo aquilo antes elas não entendiam no início. Porque ler é tão extraordinário, ler é um ato revolucionário, que nos modifica o pensamento, tinge o coração e alarga os sentidos da vida.

Como você enxerga as intenções do governo de aumentar as taxas de comercialização de livros?

Este é um assunto que me dá nos nervos. Como pode a Receita dar a justificativa que a taxação é porque a maior parte dos livros no país é consumida pelos ricos. Inacreditável ler coisas deste tipo. Basta ir à Bienal para saber da importância da viável comercialização do livro. As pessoas não consomem mais livros porque têm poder aquisitivo baixo. O livro deveria ser um objeto tão acessível quanto uma bola de futebol. Na verdade, o presidente Bolsonaro, já anunciava em sua campanha presidencial que não tinha apreço cultural, pois, em sua visão pequenez, na cultura estava contida algum mau que ofendia a sociedade brasileira. Isso foi um desatino penoso para a nossa cultura. Como se a cultura, de algum modo não fosse algo quase arqueológico de uma consciência nacional. O que o presidente ainda não entendeu é que ele pertence a um país no qual a cultura se fazia e se faz independente dos seus desígnios, e que ele deve zelar por esta cultura. Esse pais é do povo brasileiro, representado pelos grandes intelectuais, pelos grandes escritores, cantores, grandes compositores, pintores, pelo samba, pelo indígena, pelas danças, inclusive pela grande literatura. Tudo isso é o Brasil. Muito mais Brasil do que ele pensa.

Quem são seus escritores e inspirações literárias?

São muito. Eu seria incapaz de nomear todas minhas inspirações; porém, jamais posso deixar de atribuir a esses, dois nomes: Machado de Assis e Nélida Piñon.

Sabemos que o Brasil é um país em que as pessoas têm apreço por publicação de literatura de memórias e que, neste contexto alguns autores acabam inclusive escrevendo memórias muito cedo. Como você enxerga esse gênero literário? Você pretende escrever um livro relatando suas memórias?

É preciso entender que memória é um gênero literário, não exatamente que seja uma autobiografia, que é também outro gênero. Existem vários tipos de autobiografia, vou citar uma classe: por exemplo, Joaquim Nabuco, Roberto Campos, Carlos Heitor Cony… Já memória é diferente, quem cultivava muito memória era Humberto de Campos, Gilberto Amado, Pedro Nava, outro grande memorialista era o Nelson Rodrigues. Memória pode ser escrita sem nenhum compromisso básico com a verdade, pois há sempre uma pitada de ficção. A própria memória é seletiva, muitas coisas que a gente lembra do passado é diferente, há muitas coisas importantes que a gente não se lembra. De todo modo, é um gênero muito gostoso. Eu gosto muito de memórias, quem sabe no futuro eu escrevo algo do tipo.

Retomando ao assunto das rodas literárias e acadêmicas, como você enxerga o possível ingresso de Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras? Quais grandes escritores você acredita que deveriam se tornar imortal da ABL e ainda não ingressaram??

A Fernanda é uma grande atriz, é um grande nome para a ABL, entretanto, acredito que a vez seja da notável escritora Conceição Evaristo. Mais cedo ou mais tarde ambas ocuparão suas cadeiras na Academia Brasileira de Letras, pois têm suas vagas garantidas.

Como seu gênero literário predileto, crônicas, evoluiu ao longo dos últimos 10 anos?

A crônica é um gênero de entretenimento, ela vai ao contrário da poesia ou do romance, que podem ser escritos para poucos, é bom que seja assim – o autor pode ir para onde quiser, pode ser obscuro, erudito, e exigir que o leitor tenha muitas referências. A crônica é um gênero do jornal, portanto, ninguém vai entender o que você está escrevendo, se for muito erudito ou usar muitos termos técnicos; afinal, o gênero crônica é para que as pessoas entendam e se divirtam. Ah, acredito que a crônica esteja sempre mudando um pouco. O Rubem Braga é um exemplo disso. Há textos dele dramáticos, e melancólicos – sem nenhum pouquinho de humor. Machado de Assis também foi um grande cronista, ácido. O lado bom de escrever crônica é que ela não nasce de algo exatamente vivido; às vezes eu crio partindo de uma situação, um encontro com uma pessoa, um vizinho. A crônica não é um relato totalmente fiel, apesar de algumas vezes sim, porém, comumente, a situação que eu estou dizendo que aconteceu, não aconteceu; mas o leitor nunca vai saber se é real ou ficção.

O livro K Entre Nós, tem feito um grande sucesso em todo o país, a quem você dedica essa belíssima obra? E qual é a crônica predileta que nele contém?

Impressionante como este livro vendeu absurdamente. Não sei se ele é tão diferente dos outros livros anteriores. Sou grato aos amigos e leitores que sempre estão comprando o livro e indicando para mais pessoas. O livro foi dedicado aos meus pais, sobretudo, para aqueles que gostam da literatura simples do cotidiano. Quanto a minha crônica predileta eu não saberia lhe responder.

Quais são seus projetos para o futuro? Há intenções de algum livro de memórias? Romances? Roteiros de teatro?

Acho que ainda é muito cedo para escrever um livro de memória. Quanto ao romance, no próximo ano estará pronto, talvez seja publicado no primeiro semestre de 2023.  Já escrevi uma peça de teatro em 2012.

Em sua opinião, quem é o maior escritor e a maior escrita brasileira de todos os tempos?

Machado é o grande gênio brasileiro e tenho paixão por ele, sem um resquício, Machado é o maior, e a escritora ainda continua sendo a Nélida Piñon.

Na atualidade, temos percebido um grande anseio pelo uso das redes sociais e a abreviação, e até criação de palavras inexistentes em nossa língua mater. Você acha que a juventude contemporânea tem se desinteressado da leitura impressa e escrita? Isso tem afetado o nível cultural e comunicativo da atualidade?

Hoje comprovo isso. Talvez eu esteja equivocado, espero estar. O que vejo é um empobrecimento no nível cultural e intelectual no cotidiano, há uma urgência léxica muito grande na compreensão dos fenômenos humanos, na dificuldade de se exprimir. Mas sinto que, por outro lado, há outra cultura cibernética que ainda é tudo muito nova, até mesmo para mim que estou sempre atualizado. De certo modo, vejo que as pessoas se tornaram mais aceleradas, e não existe espaço para algo mais profundo e substancial.

Entre as polêmicas atuais, qual sua opinião sobre o professor, escritor e militante Paulo Freire?

O que pensar de um homem que possui 41 títulos de doutor honoris causa de universidades como Harvard, Cambridge e Oxford? Parte das críticas vem de quem nunca leu sequer um livro dele. Volto a dizer, o Brasil sempre comete os mesmos erros por não conhecer a sua própria história. Temos tendências para sermos o país do futuro, mas o fato é que ainda somos periféricos. Quem conhece bem o mundo europeu, o mundo americano, conhece bem os seus grandes, conhece os grandes suplementos literários, e sabe de uma coisa? Nós quase não aparecemos. Infelizmente não deixamos marca profunda ainda, extensa, transformadora no mundo, contudo, Paulo Freire continuará sendo grande lá fora e aqui.

Conte-nos um pouco sobre sua vida cotidiana, separando-a um pouco do Kerley escritor?

Minha vida pessoal não é tão diferente da vida do escritor, não há nada tão interessante. Tenho uma rotina muito comum, não tão distante de qualquer outro jovem que trabalha e estuda. A diferença é que, com o passar dos anos, eu tenho me tornado mais solitário. Não abro mão da vida simples, sem muita agitação. Sou alguém que ama a banalidade do cotidiano nas horas adequadas. Ela ajuda a combater o tédio da vida inerte, embora a banalidade seja uma ameaça à arte, portanto, o banal em excesso prejudica e afugenta a criação. Mesmo que eu não esteja trabalhando o tempo todo como escritor, eu penso com escritor. Aliás, eu sou escritor 24 horas por dia. Já não sei mais deixar de ser.

Entrevista realizada por: Lucas Ravacci, formado em Serviço Social pela Universidade Norte do Paraná, professor da Faculdade Nacional de Sorocaba/SP.

Fotos: Jhenice Pinheiro Edição: Jefferson Moraes

 

Academia Caxambuense de Letras – outubro de 2021

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