A coluna de hoje é com Inez Cabral, Acadêmica Correspondente.
Ecos da pandemia
“Saudade da Creusa. E dos moleque. Mas se ficasse em Japeri, nóis morria de fome. Essa doença piorou o que tava difícil. Vim pra cá, dormir na rua. Tem um caminhão com sobra de carne dos mercado. Consigo até osso com alguma carninha. Agradeço ao açougueiro que deixa pra nóis. Tem mais gente aqui. Cato um monte de osso e pelanca. Guardo um pouco pra levar pra família quando consigo a grana do trem, o resto cozinho aqui mesmo, pra quem quiser se chegar. E domingo é uma festa. Um monte de verdura espalhada no chão.
Hoje num deu pra ir buscá. Num adianta, o sal acabou, e estragá comida é pecado. Tentei levantá algum pra comprá, num rolou nada. O lado bom, é que num tenho que ver o preço das comida, nem as madames enchendo o carrinho. Fico triste. Um monte de vizinho de rua vão tudo passar fome. Até que tentei descolá umas moeda, mas só o que ouvi foi:
─Vai trabalhar, vagabundo!
─Não dou grana a cracudo.
─Cuidado, é bandido!
─Chega pra lá, você tá sem máscara!
Ouço tudo calado. Nem rezo, deixo nas mãos de Deus. Mas tá ruço. Será que ele ouve?
Será que vou ter que ir na igreja? Não aprendi a rezá. Nem a orá. Por isso, parei de pedi. Acho que ele num me entende, tem que falar as palavra certa. E essas eu num sei. Chega um moleque e pergunta se hoje num tem rango.
─Tem não, acabou o sal. Nem fui lá buscar osso, senão estraga. Estragá comida num tá certo. Fiquei com pena da cara dele.
Pelo menos, num tô sozinho. Aqui tem meus amigo e o Rex, que dorme encostado em mim quando tá frio, me lambe, e gosta de mim. Às veis a gente até se diverte, quando tem jogo. o Marlo descolou um radinho, e arruma pilha por aí. Nunca me disse onde, nem eu perguntei.
Político num aparece. Acho que eles têm medo de nóis. Se viesse algum, até criava coragem e ia pedi a ele pra olhar por nóis. Já que o Homem lá em cima num atende. Será que político ia atendê? As única otoridades que vêm às veis é a polícia, põe nóis tudo pra correr. E os gari, que sai varrendo as latinha que a gente catô, nosso papelão, Nóis tem que empilhar, nóis cata de noite, e só vende de manhã. Nóis leva tudo na carcunda, roubaro o carrinho do Ezequiel. Tem que ficar ligado, quando alguém vê a farda laranja, avisa, nóis sai catando tudo e correndo. Outro dia levaro até a lata do rango. Foi difícil arrumar outra. Mas roer osso cru, num dá. Só quem consegue é os cachorros.
Hoje tô triste. Sonhei cum minha preta
Academia Caxambuense de Letras – outubro de 2021