Cultura e Lazer

ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRAS

Eva Miranda

A coluna de hoje é com Eva Miranda (Manaus, 6.ago.1985).  Mestre em Letras e Artes e Bacharela em Teatro pela universidade do Estado do Amazonas, doutoranda em Teatro pela University of Manitoba. É atriz desde a adolescência, com diversos trabalhos realizados em Manaus, com destaque para “A Casa de Bernarda Alba” pela AACA no Festival de teatro da Amazônia em 2014. Integrou o elenco do podcast “Cantos para Castro Alves”, contemplado pelo edital Cultura Presente nas redes, em 2020. É servidora do Centro de artes cenicas da funarte, atuando como produtora, curadora de programação dos teatros públicos, avaliadora de projetos para fomento direto e auxiliar de coordenação no Prêmio Funarte Descentrarte.

**********************************************************************************************************************

Vendendo o nada e expondo coisa alguma

Na peça homônima de Shakespeare, o príncipe Hamlet reflete sobre a vida e seu fim. No Ato III, cena um, ao pronunciar a frase mais famosa do teatro ocidental – “Ser ou não ser, eis a questão”, Hamlet se questiona se escapar às dores e desafios da vida através da morte é uma possibilidade, ou se é mais nobre suportar “as pedradas e flechadas do destino feroz”.

Em 18 de maio de 2021, o artista italiano Salvatore Garau disponibilizou para leilão a obra “Io Sono” (em português, eu sou). A imagem da obra no site da galeria era um quadrado em branco, e a obra é definida como uma escultura imaterial. Salvatore defende que o vazio não está de fato vazio: nele há possibilidades e energia. Em entrevista que compôs o catálogo do leilão (disponível no site www.art-rite.it ), Salvatore Garau diz que “Se eu determinar que em um determinado espaço “exibo” uma escultura imaterial, esse espaço atrairá a atenção e o pensamento das pessoas. Então, acredito que a densidade de pensamento recém-formada concentrada em um dado espaço dá vida a um aglomerado de elementos que, mais cedo ou mais tarde, tenho certeza, a ciência com novas ferramentas (quem sabe se já existem) vai decifrar. Centenas de pensamentos focados em um ponto criam uma escultura que assumirá as mais variadas formas de meu título”.
E em um paralelo com o título da obra, que é o nome do Deus do velho testamento, a existência ou inexistência da obra fica vinculada à fé de quem entra em contato com ela. Terá o italiano criado a perfeita representação de Deus, ou apenas uma ironia de mau gosto sobre o mercado de arte?
O ato de vender o nada – e no leilão Io Sono foi vendida por um lance de quinze mil euros, tendo o comprador recebido um certificado de autenticidade – é ousado, de fato, ainda que não seja original. Em 1958, Yves Klein idealizou a exposição Le Vide (O Vazio), com pinturas invisíveis. Nas palavras do próprio Klein,
“decidi pôr fim ao conflito [entre cor e traço]; presentemente, minhas pinturas são invisíveis e são elas que desejo expor na minha próxima exposição em Paris na Galeria Iris Clert de uma forma clara e positiva ”.
Yves Klein, excerto de «Minha posição na batalha entre a linha e a cor», 1958, Superando a problemática da Arte -Os escritos de Yves Klein

Assisti em 2016 ao monólogo “O escândalo Philippe Dussaert”, texto do dramaturgo francês Jacques Mougenot contemplado pelo Prêmio Philippe Avron, brilhantemente interpretado por Marcos Caruso com direção de Fernando Philbert. O espetáculo, estruturado como uma palestra sobre o polêmico pintor Dussaert. O pintor contemporâneo tinha imensa habilidade de copista, e entrou no circuito de exposições com uma recriação meticulosa da Monalisa, porém sem a representação da gioconda, intitulada “Ao fundo da Monalisa”, com a paisagem de Leonardo da Vinci exaustiva e minuciosamente reproduzida. Seguiram-se “Ao fundo do Banho de Diana”, “Ao fundo da Pega”, e entre outras cópias/ recriações de clássicos, “Ao fundo do Casal Arnolfini”. O “escândalo” examinado no espetáculo ocorreu no lançamento da exposição atrevidamente intitulada “Ao fundo”, e nos faz refletir acerca daquela mesma questão que a venda da escultura imaterial de Salvatore Garau nos suscita. O que confere valor à arte: sua existência objetiva ou as diversas camadas de significado conferidas a ela por nós, pelos críticos e pela comunidade artística?

E talvez o significado conferido à escultura do italiano esteja acrescido de mais uma camada neste exato momento em que você lê este texto, camada esta adicionada pela importância que damos a ela! A escultura Io Sono, que tem preço e certificado de autenticidade porém não tem massa nem tangibilidade, estará assim como Hamlet, entre o ser e o não ser?

Eva Miranda
Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas
Acadêmica Correspondente da Academia Caxambuense de Letras.
(agosto de 2021)

 

Academia Caxambuense de Letras – Agosto de 2021

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo