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ESPECIAL – O FILME QUE VI

Relatos do Mundo

Relatos do Mundo se passa no Texas, 1870, cinco anos após a vitória do Norte progressista sobre o Sul escravagista. Desobediência, desafio e racismo são as manifestações do ressentimento contra os vitoriosos. O imaginário é o do western, mas a narrativa se refere ao luto.

O ex-capitão sulista Jefferson Kyle Kidd viaja pelas cidades lendo notícias de jornal para seus habitantes. Os relatos variam mas, em geral, tentam sobrepor a esperança à devastação da guerra

Por acaso, Kidd encontra uma criança branca com vestes indígenas, cujos pais (vamos saber) foram mortos pelos Kiowa, com quem ela passou a viver. Agora, seus pais Kiowa foram mortos pelos militares, tornando-a órfã pela segunda vez. Kidd toma conhecimento de que ela se chama Johanna, é filha de alemães, e cuida para que alguém a entregue aos seus tios. Tentando se desvencilhar daquele peso, ele a leva a um posto do exército, onde a recusa oficial o faz tomar para si a responsabilidade.

Johanna não fala inglês e Kidd não entende Kiowa, mas dois têm em comum a experiência da violência, da devastação e da morte, sabendo que a vida segue em frente e os obriga a retomá-la. “Nós dois temos demônios para enfrentar”, afirma Kidd, mas sua estratégia de enfrentamento é negá-los.

Equívoco. Toda reconstrução exige que se olhe para trás, por mais dolorosa que possa ser essa visão. Johanna não se nega a isso, mas Kidd custa a admitir que também ele, com suas cicatrizes, terá que lidar com seus guardados, se quiser abandonar a posição de quem narra histórias alheias e tomar posse da sua própria história.

A demonização das diferenças faria uma ponte entre o Texas de 1870 e o século 21, mas a melancolia pós-guerra nos faz pensar em nossos dias. Neste tempo de reclusão, todos queremos contar e ouvir alguma coisa, relatos de mundos melhores para além de cada confinamento. Somos ao mesmo tempo o Capitão Kidd e sua audiência, na expectativa de reconstruções, alianças e rearranjos. Ele nos conta que em Baton Rouge, Louisiana, um homem morto e enterrado levantou-se do túmulo, ressurgindo da própria morte. Mais ou menos o que ocorreu a Jefferson Kidd, ou o que desejamos que aconteça a tudo o que nos vem sendo tomado.

Eder Schmidt – Psiquiatra e psicanalista

@drederschmidtpsiq

ufjf-br.academia.edu/EderSchmidtPsiquiatriaUFJF

 

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