A coluna de hoje é com: Nélida Cuíñas Piñón (Rio de Janeiro, 3 de maio de 1937). Escritora brasileira, e integrante da Academia Brasileira de Letras, a qual já presidiu e Acadêmica correspondente da Academia Caxambuense de Letras.
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CADA BIBELÔ TEM UMA ALMA
Nélida Piñon
Somos seres acumulativos. Com mania de comprar objetos que enfeitam a casa e a vida. Cada vez que se viaja, traz-se para o interior da sala aquelas lembranças que vão fazer parte da nossa memória. E que traduzem nosso gosto estético e um pouco de nossa biografia. São como aquelas migalhas de pão que João e Maria, no afã de deixar um rastro, espalham pela floresta. E que bem falam deles e de seus destinos. Estes bibelôs, enfeites, troféus, são assim indispensáveis ao nosso cotidiano. E conquanto não sejam essenciais na prática, têm a transcendência dos livros de oração, de tudo que é para nós sagrado.
Quando visito amigos observo as peças que são objeto de culto por parte do dono. São elas que me dizem em que espécie de casa estou. A quem essa morada de fato pertence. O tipo de rubrica estética e afetiva que o dono leva nas costas. São peças, enfim, que na sua banalidade falam da alma alheia, dos seus medos, da sua infância, das suas frustrações. Fico a imaginar o que representam esses objetos se lhes faltarem seus donos. Como sobreviveriam à morte de seus proprietários. Onde iriam eles parar na hora do inventário. Sob proteção de quem guardarão eles para sempre o calor dos seus antigos senhores.
De visita, pois, a essas casas, sou frequentemente tomada pela tristeza. Sobretudo quando olho na prateleira aquela alpaca de cobre, por exemplo, trazida das montanhas peruanas, graças ao fervor de quem a comprou com a convicção de incorporá-la ao seu patrimônio pessoal. O que ocorrerá no futuro?
Quantas vezes, após despedir-me de um amigo que se foi para sempre, sofro sobressaltos. Primeiro temo que chova nos dias que se seguem. Não quero encharcada a terra onde repousa meu amigo. Posteriormente evito retornar à casa onde ele viveu acomodado em meio às coisas que compuseram o seu universo. Julgo intolerável inventariar seus objetos, ver dispersas as peças que, longe dele, de volta ao mundo, soltas, sem nome, nada dizem. O que falará mais dos mortos que seus pertences abandonados? Já não tendo quem os aprecie, encaminhe-lhes um olhar amoroso. Cada peça agora perdendo sua linguagem original. Já não tendo como defender a presença do finado, que começa a esfumar. Como a conclamar que não o esqueçam. Como é triste um objeto que perdeu seu dono! Quando o dono já não se encontra por perto para tirar-lhe a poeira, para acalentá-lo com a palma quente das mãos. Já não se sabendo destinado a enfeitar a vida e a imaginação de um homem.
Academia Caxambuense de Letras
julho de 2021.