Nesta semana a coluna da Academia Caxambuense de Letras apresenta um conto de Inez Cabral. A escritora nasceu em Barcelona em 1948. Viveu entre Marselha, Recife, Sevilha, Brasília, Genebra, Berna e Rio. “O Que Vem ao Caso” livro editado pela Alfaguara, narra as memórias de 70 anos de Inez Cabral, passam muito mais por sua busca incessante por liberdade do que pela relação que tinha com seu pai: o diplomata (veio daí a vida nômade da menina) e poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Inez chegou ao Rio em definitivo desde 1969, e acabou não se dedicando nem às artes visuais nem à literatura, mas ao cinema e à TV, escrevendo roteiros e filmando.
Inez compilou obras do Poeta João Cabral de Melo Neto algumas inéditas.
É Acadêmica Correspondente da Academia Caxambuense de Letras. Ela assina a coluna de hoje.
CASEI AOS QUINZE ANOS
Aquele amor infinito que é o primeiro. Quer dizer, não casei, fugi com ele. Era lindo, Marrento. Tinha tatuagem. Um gato de rua, o gato da rua.
Nos amamos um ano e uma barriga ainda invisível, de dois meses.
Depois disso, ele voltou ao que era, não sei como não percebi antes: além de marrento, era violento também.
Me lembrei da minha tia Tilinha, irmãzinha caçula da minha mãe. Ela apanhava do companheiro, aceitava. Saía de casa, corria para a igreja. Chorava escondido e aguentava. Eu criança, via aquilo e não aceitava.
―Cai fora, tia!
―Vou pra onde?
―Cala a boca menina, isso é papo de gente grande.
Tinha que calar a boca, ver o sofrimento da tia. Pensava: “Quando crescer, não vou aguentar homem assim”
Um dia, lá estava eu na mesma situação. Lembrei da tia, mandei ele às favas, fui embora. Só vi mais uma vez, para contar que era pai. O bebê tinha microcefalia, talvez ele pudesse ajudar.
―Tem certeza que é meu?
Fiquei tão chocada que nem respondi. Perdi o bebê. Chorei. Hoje sinto que foi melhor assim.
Lá estava eu, sozinha no mundo. Os homens gostavam de mim, me olhavam passar, diziam gracinhas. Era bom saber que alguém me apreciava. Descobri, aos poucos que sexo dava dinheiro. Por que não tentar?
Me adaptei. Às vezes pensava em alguém só pra mim, lembrava dele, desistia. Antes só do que mal acompanhada, é o que dizem. Quem diz, tem razão. Vida que segue. Ou melhor, seguia. Até esse vírus.
Os clientes sumiram, ou quase. Trabalhar é como jogar roleta russa. Colegas adoecem para não passar fome. Algumas morrem. Antes morrer da doença do que definhar aos poucos, é o que dizem. Outras, correm atrás do prejuízo, exercem como podem, qualidades que nem sabiam que tinham, como fazer quentinhas, se conseguem a grana para comprar os insumos, ou fazer máscaras. Outras, como eu, fomos despejadas do pardieiro onde morávamos, e estamos na rua. Antes pedir do que roubar. Não sei se acredito nisso, mas me falta a coragem para assaltar alguém. Sinto que o que é dos outros não me pertence.
Temos uma associação, ou sindicato, ou seja lá como se chame. Quando a vacina chegou, fizemos greve. Não adiantou nada. Segundo os que mandam, os que oram e pagam dízimos, não somos consideradas grupos de risco, nem linha de frente de nada. Somos apenas devassas. Continuamos adoecendo, morrendo ou mendigando. Operárias do sexo não entram em estatísticas, não são ninguém, nem sequer números. Só nos resta esperar.
Um dos meus clientes era da igreja. Na última vez que o vi estava com a esposa, passou por mim como se não me conhecesse, dizendo para ela:
—O lado bom dessa peste é limpar os costumes. Ajuste sua máscara querida. Não dê chance à doença. Deus só ajuda quem se ajuda primeiro.
Autora: Inez Cabral
Academia Caxambuense de Letras
Maio de 2021.