Cultura e Lazer

CONTO ESPECIAL – Um Amor nas Escadas

Kerley Carvalhedo

Recordações partilhadas são uma necessidade.
De repente alguma coisa surge para ressuscitar nossas lembranças mais ocultas. Há janelas que se abrem repentinas em nossa vida, trazendo uma luz que acende a nossa memória. Hoje foi assim; tirei o dia para recordar, mas sem saudosismo, sem tristeza, sem angústia, com outro sentimento: melancolia.

Encontrei no YouTube o Canal do meu amigo e professor Gesiel Nunes, um vídeo no qual ele faz um tour pelo centro comercial da Vila Permanente em Tucuruí, Pará. Há um momento da filmagem que aparece uma das escadas do centro comercial, escadas essas, que serão uma das peças fundamentais desse enredo. Nesse instante, subitamente fui tomado por um sentimento de profunda nostalgia, que me fez reviver os mais profundos sentimentos de afeto, de entrega, de companheirismo e por que não dizer de paixão?!

O ano era 2006, época onde não havia tantos recursos tecnológicos como na atualidade, mas havia uma interação recíproca e verdadeira. Eu estudava no tradicional colégio Rui Barbosa, localizado na Vila Permanente, entretanto, morava na cidade ao lado: Breu Branco. Todos os dias eu fazia esse trajeto entre essas duas cidades, carregando na minha bagagem estudantil os meus sonhos e minhas convicções.

Na escola, convivendo com diversos estudantes, acabamos conhecendo rostos e características físicas que fazem parte da nossa rotina no ambiente escolar. Nessa multidão de estudantes, eu sempre via alguém que parecia ter uma luz diferente, porém, não sabia o nome.

Um dia, após a aula, resolvi ficar andando no centro comercial, olhando as lojas, vitrines, admirando o lugar tranquilo, arborizado, limpo… ao descer uma de suas escadas, ainda do alto no corrimão, vi alguém, que para minha surpresa era o alguém que parecia ter uma luz diferente, que na verdade chamava-se Zure.

A escada, toda feita no concreto, de cor acinzentada, com mureta, com seus degraus resistentes e, certamente servindo de passagem para muitas histórias, continua até hoje exercendo sua função.

Era a segunda vez que via Zure sobre a mureta da escada, sentava-se sempre ali. Claro, eu não sabia o motivo pelo qual Zure sentava ali. Observei que, ao seu lado, junto à lata de refrigerante agora vazia, ouvia algo no fone de ouvido, porém ouvia apenas de um lado. Percebi que não estava “viajando” em redes sociais, nem trocando mensagens, mas obedecendo a alguma necessidade, talvez emocional, imposta por aquela solidão consentida.

Não se interessou pela minha chegada, é provável que nem tenha percebido. O foco estava na música, mas, por um instante, virou-se em minha direção e vi em seu rosto a lágrima salta-lhe os olhos. Isso me chamou a atenção. Pois, não é algo tão comum encontrar alguém chorando em uma escada.

Sou pessoa bem-educada, porém sempre que vejo alguém chorando ao meu lado, peco de indiscrição.
Perguntei-lhe então se precisava de ajuda, entretanto, não respondeu, como também não hesitou minha presença. Outra vez, insistentemente pergunte-lhe se precisava de algo, por vezes os lábios, não silabando, parecia trazer à boca as palavras, que não vinha. Apenas chorava copiosamente. Esta não era a primeira vez que via Zure na mureta. Daquele jeito ainda não tinha visto ninguém, não naquele lugar.

Discretamente fui puxando assunto com Zure, no intuito de amenizar qualquer que fosse o problema que tivesse enfrentando naquele momento. Mesmo sem muita intimidade, Zure permitiu que nossa conversa se estendesse aos mais variados temas, como: família, problemas emocionais, sentimentos, entre outros.

Depois de uma longa conversa fui embora, pensando o que se passara na cabeça daquele ser incapaz de administrar suas emoções, talvez não tivesse maturidade suficiente para isso.
Dia seguinte, para minha surpresa, Zure estava lá outra vez na escada, só que agora com um leve sorriso de canto de boca. Assim foram todos os outros dias seguintes, nossos encontros na escada, aliás, ficávamos sentados em cima da pequena mureta, que serve de apoio como se fosse um corrimão.

Ao ir embora, as vitrines me pareceram mais coloridas nos dias seguintes, embora eu tenha passado tantas vezes e não tinham nada de verdadeiramente novo ou surpreendente capaz de atrair meu olhar, mas dessa vez, tudo me parecia mais bonito. E naquele fim de tarde cinzento, num calor de verão, os ventos mornos me pareciam brisas, o canto dos pássaros soava como acalento para meu coração.

Eu não tinha certeza de nada, mas tinha impressão que ali começaria um grande amor, só não sabia que este amor duraria muitos anos. O tempo foi passando e cada vez mais, nos aproximávamos, meu mundo sombrio e solitário, parecia que deslizava para o caminho da felicidade, o que de fato foi muito feliz. Tudo era lindo, parecia ser mágico, era tudo muito único e, sobretudo, especial.

Houve um dia que atravessei ansiosamente os blocos do centro comercial rumo às escadas. Mas cheguei cedo demais e não vi ninguém, confesso que fiquei triste, desapontado, confuso. Vaguei por uma loja de flores, onde tudo me pareceu sem lógica, andei um tanto a esmo, até chegar à conclusão de que ali não seria mais o lugar ideal para nos encontrarmos.

Mas, posteriormente o sol voltou a brilhar com mais intensidade e calor e, encontramo-nos incontáveis vezes, vivemos demasiadamente tudo que tínhamos de viver, fizemos longas viagens pelo Brasil, sonhamos juntos, conquistamos juntos. Zure e eu nos amamos de forma intensa e profunda, o amor foi tão recíproco e único, que nossa história virou contos nas páginas de livros fora do país, foi de fato tudo muito mágico e puro, onde não havia espaço para sentimentos ruins. Mas, como a vida é feita de ciclos, chegou o dia que eu precisava seguir um caminho e Zure outro. Nove anos depois deste encontro, decidimos colocarmos um ponto final em tudo, menos na amizade e partimos de corações partidos. Zure partiu para o Sudeste, eu para o Centro-Oeste do país.

Alguns anos depois eu passava sozinho pelas escadarias do nosso primeiro encontro, e podia lembrar de detalhes, como se tudo acabara de acontecer. Tudo passou, mas as lembranças ficaram.
Nosso passado não passa, é um pretérito que mantemos vivo. Apesar de tudo, aquelas escadas preservaram uma história, ou melhor, imortalizaram uma memória de um grande amor.

Kerley Carvalhedo é cronista e escritor. É membro correspondente da Academia Caxambuense de Letras. Começou sua carreira no jornalismo em 2011 no jornal ‘DiárioRS’. É autor de livros, entre eles o livro de crônicas “K Entre Nós” sua obra mais conhecida.

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