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Esther Lucio Bittencourt

A coluna de hoje é com Esther Lucio Bittencourt.

A mulher dos colarinhos

Na década de 20, 30, 40 do século passado, nada era mais importante para um homem do que um belo colarinho. Fugidas da Europa em guerra, primeiro da Russia, onde nasceram, depois Alemanha, Polônia Russa, Romênia, as duas irmãs, remanescentes de uma grande família, eram peritas em costurar colarinhos de camisas e assim criaram seus filhos: costurando colarinhos. Os homens foram mortos na gripe pandêmica espanhola que, na verdade, era americana.

Plena Segunda Guerra Mundial, costuravam e inventavam comida para todos. O Presidente do Brasil, Getúlio Vargas, era um entusiasta do eixo berlim, itália, japão e ajudava os alemães. Até que a marinha norte- americana acabou com o entusiasmo getulista. O Brasil entrou na guerra.
Não havia comida suficiente para o povo que recebia tickets de alimentação insuficientes.

Sou deste tempo, da Segunda Guerra Mundial. Papai saía de noite para conseguir leite. Ao voltar, mamãe perguntava: conseguiu, Tonio. Ele não respondia. Pegava o galão de latão e o emborcava: vazio como sempre.
A mulher dos colarinhos inventava alimentação com água, farinha e amor.
Assim a infância passou: ouvia falares estranhos pela casa, às vezes sussurrados, mas eram muitos erres para não esquecer
Chegou o ginasial. E Getúlio suicidou. Nova tensão, agora pós-guerra mas dentro de outra guerra, a fria.

Apesar das cantorias de Emilinha e Marlene havia tensão no ar.
Aos domingos pela grade do muro via passar as famílias na roupa domingueira pela Mario Viana, a rua, Santa Rosa, o bairro, Niterói, a capital do Estado do Rio de Janeiro.
Na época do natal, sem presentes a não ser um vestido, um sapato de verniz e a família reunida em torno da mesa esperava os ovos nevados da vovó.
Mas havia a Missa do Galo. Tia-avó Beatriz não perdia uma. Era beata até o último fio de cabelo. Os demais familiares escondiam a ascendência judaica e não iam para a missa. Mesmo a Missa do Galo, imponente nos sinos, chamando na Igreja dos Salesianos.

Década de 50 chega com muita turbulência. Aí 60. Athusser, Bertrand Russel, os resquícios de Simone de Beauvoir e Sartre. As mulheres queriam igualdade. Leila Diniz ajudou ao exibir o ventre prenha e nú.

Juscelino forjava Brasília já com os militares no calcanhar . O Rio de Janeiro, capital da República, ficou deserto. O foco era a nova Capital Federal. Bossa Nova, a garota de Ipanema, o barquinho, Vinícius, Tom, Joana Francesa, Brigite Bardot. A cidade mais procurada do Brasil era Cabo-Frio no Estado do Rio de Janeiro. Até que chegou 64 e o golpe militar veio. Com Missa do Galo e tudo. O golpe chegou depois do natal passado mas permaneceu por vários natais onde os sinos dobravam a tristeza dos galos cortejados pela família, pátria e matança.

O Brasil , desde seus primórdios , vivia de susto em susto, de golpe em golpe. Prisões, proibições, censura, e assassinatos. Pegavam os torturados ainda vivos, colocavam em helicópteros e os jogavam lá de cima para verem seus corpos espatifarem no mar. As Universidades acossadas; conversar nas ruas era um perigo, trabalhar em jornal era aflitivo, matérias censuradas, páginas inteiras vazias ou com receitas de comida. O tempo de chumbo era informado nas letras miúdas da previsão da temperatura. Estar em casa também era um perigo pois podiam bater na sua porta e te levar para a morte.

Quem pôde, teve tempo, fugiu. Para a Europa onde 68 era uma festa de novas idéias, ideais e canções e poesias. Cores, flores, brisa. Em 68 fui conhecer o famigerado Usltra no Doi-Codi de São Paulo onde tantos amigos morreram. Entre porradas e choques acordava de algum desmaio. Era assim o Brasil. O mundo em guerra fria, o Brasil em febre ardente de maldade e atentados.

Vietnã, e “os meninos amavam os beatles e roling stones”,  e morriam na guerra lá e cá. Europa em guerra também. Várias anexações eram feitas por países vencedores; Cuba cercada por Kennedy contra Fidel, mortes no Chile, Argentina, a América do Sul uma poça de sangue. O medo de um comunismo que nunca existiu. Não. Nunca! Comunismo vem de comuna o que é comum a todos. Quando aconteceu o que é meu é seu em nossa história mundial?

O medo disfarçava o desejo de posse. Até hoje disfarça; chamamos de temor o subterfúgio da conquista. E por aí vamos. Até hoje.

Pandemia de sars-cov 2. Um ex-milico expulso do Exército com militares no poder e corpos dos nossos mortos deixam o mapa-mundi numa poça de sangue e sequelas, enquanto milionários dão uma volta de foguete no espaço sideral. E há medo dos comunistas ainda. Ainda!
E também a missa do galo.

 

Academia Caxambuense de Letras – dezembro de 2021

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