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MISSA DO GALO – ESPECIAL ACADEMIA CAXAMBUENSE DE LETRAS

Nélida Piñon

Acadêmicos da Academia Caxambuense de Letras utilizando o famoso conto de Machado de Assis, que motivou contar a experiência pessoal de cada um, com alguma ficção, tem por fim desejar a todos nestes anos atribulados da pandemia um momento de leitura com o tema natal e alguma felicidade que, quem sabe, possa vir em breve.

Missa do Galo

Bem sei que já não sou mesmo. Ainda que atrase o relógio, que o trago sempre atado à presilha da calça, passa-me o tempo com demasiada pressa. E qual não é meu espanto ao já não mais ver-me em 1860, mas já a pisar, e sem a firmeza de outrora, o chão de 1862. Eis dois anos decorridos sem a minha cumplicidade, deles sequer dei-me conta. Com mais frequência agora apoio-me na bengala encastoada a conversar com os amigos na esquina do Ouvidor. Sou o primeiro a aceitar que muito excedi-me no trato com as moçoilas, cada qual tão mimosa que havia que apreciá-las de perto. Nisto fraquejou-me sempre o coração, mostra-se ele mais forte que as promessas feitas em sinceros instantes de contrição. E aí está o Patek, Philippe, presente de conhecido meirinho da praça, por serviço que lhe prestei, dando-me conta do tempo vencido.

Mas, se já não sou o mesmo, nem por isto dou-me por derrotado. Até pelo contrário, ciente do quanto os dias se encurtam, lanço-me agora, e com mais desenvoltura, aos gostos que se provam nesta aventura. A cada esquina lá está o destino a surpreender-me encarnado em formosas damas afeitas ao próprio brilho. Diligenciam-se elas muito mais com a perfeição dos próprios penteados do que nos pagam atenção. Logo a nós que lhes servimos com grande apuro, a começar pela aparência cuidada, desde as luvas de suedine, botas de couro no verão. E tudo, muitas vezes, por nada. Não nos concedem de imediato fartas regalias. Há que ir com paciência. Mas também, a que outros haveres deve um homem dedicar-se nesta terra? Estas ruas da cidade, aliás, conspiram todas contra os instintos, estas agudas flechas que uma vez disparadas cravam onde não deviam, há que arrancá-las com arrebato e certa perda de sangue.

Hoje, sinto-me especialmente bem. Muito alivia-me o Natal quando se avizinha. Mais uma estação vencida galhardamente. Logo depois do almoço apurei-me na colônia, fui bem farto ao passá-la pelo corpo. Encareci a Conceição que se encarregasse pessoalmente de meus trajes. Afinal, um homem é sua aparência. Como sempre, obedeceu-me. A bem da verdade, ela jamais me desagravou com atitudes hostis. E mesmo quando supôs que da rua eu trazia algum desgosto, nunca me levantou a voz. E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas que os mesmos encantos que em outra mulher reluzem firmemente, nela, por mistério que não explico, simplesmente empalidecem. Com esta verdade, já estou bem conformado. Se ao menos Conceição soubesse rir!

Tratou D. Inácia de ensinar-lhe que o riso vai devagar afrouxando os costumes, neles apoiam-se unicamente os de educação modesta. Não se esquecendo a filha ainda que devia apagar do rosto justamente aquelas expressões reveladores de íntimos sentimentos. De nenhum outro modo se fortaleceria o pudor, este, sim, virtude maior. A princípio, aplaudiu-lhe o estímulo a uma graça que, na vida prática, entre lençóis, logo mostrou-se exagerada. Tanto assim que, mal eu a tocava, Conceição retraía-se toda, a tremer de frio, depressa recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto que lhe pudesse eu interpretar como generoso.

Jamais me ofertou delícias que se desdobram quanto mais as provamos. E embora não lhe veja gosto pelos atos íntimos, por força da lei e da igreja, não me eximo dos encargos conjugais. É dever que cumpro com parcimônia. E pergunto-me às vezes se tal frieza deve-se à pressa com que me desincumbo da Conceição, sem poder explicar-lhe que não queria os vizinhos a me pensarem um frascário, logo eu que tanto zelava pelo lar.

A espanar o canapé, a varrer seguidas vezes a nova alcatifa que cobria as tábuas da sala, ia D. Inácia encarregando-se de serviço próprio das mucamas.

– Se mal lhe pergunto, meu genro, a que espetáculo esteve a assistir?

Vi-lhe o esforço, sua última tentativa em defesa da filha. Aí estava uma peleja que me trazia gosto. Tinha eu todas as armas, havia que terçá-las com destreza, como me aprouvesse. Se devia-lhe pregar uma lição, aquele era o momento.

– Pois fui prestigiar a um jovem talentoso. Seu nome, se não estou enganado, é Machado de Assis. Deu-nos “O Protocolo”, que estava bastante satisfatório. Contudo uma comédia muito mais para ser lida e não representada.

Inácia chegou-se a mim, as feições ainda contraídas, fazendo-me ver que, derrotada, queria-me sob a sua guarda.

– Nas poucas vezes que visitei o Lírico, e a outras casas mais, passei a preferir Adelaide Amaral à Eugênia Câmara, disse-me afinal.

Já no cartório, a meditar sobre os documentos a ganharem minha firma, e esbarrando nos cupins que festejavam os papéis com igual empenho com que avançavam por certas almas, aconselhou-me a prudência a não descuidar-me das trajetórias de Furtado Coelho, Lucinda Simões, mesmo Tamagno, ídolos de D. Inácia, de ouvi-los mencionados. Passou a “Marmota Fluminense” a suprir-me de informações que tratava logo de despejá-las frescas no jantar das sextas-feiras. Uma providência nunca exagerada para um escrivão já habituado a frequentar o Paulo Brito, lá no Rocio, para ali entreter-se com amáveis tertúlias, quando merecia de alguns expoentes efusivas saudações.

Sem dúvida, consola-se D. Inácia em saber-me bom pagador e, ainda, por comentários que lhe chegam, bem parcimonioso nos gastos fora de casa. A verdade é que jamais me excedi, mesmo com Pastora. Pois se me quer ela próximo a si, não exija o que não estou obrigado a dar-lhe. Nunca lhe fiz chegar o que a poderia estar comprando. Houve ocasião que a quiseram intrigar comigo, garantiram-me, de sua parte, interesse vil. Este caluniador, foi logo escorraçado. Como haveria de permitir, sem desprezar-me em seguida. Que maculassem os sentimentos da mulher que me cedera, na intimidade, não somente seus ais, mas sua incorruptível confissão.

Corria a história de que lhe fugira o marido no terceiro ano de casamento, atrás deixando-lhe bilhete onde destacavam-se as palavras desterro e desesperança. Tal versão, naturalmente, indignando Pastora. Como estranhos podiam maltratá-la assim, quando, na verdade, dispuseram eles de grande vagar para íntimas despedidas, havendo para isto reservado toda a noite de domingo. Sabiam os dois que para viagem longa e acidentada, de que às vezes não se volta — ia ele para o Pará reclamar herança familiar – as palavras e as carícias trocadas valeriam, para quem ficava, e para o que partia, como precioso alento.

– E amaste tanto assim ao marido, o Sr. Bonifácio? Perseguia-me o ciúme, a querer arrancar-me pedaços que me fariam falta mais tarde. Para tal aflição, que não pude esconder, valeu-se Pastora, em meu socorro, da bilha com água. Pedi-lhe, porém, que me largasse ao próprio fado, como acudir-me quem trazia até o leito a fresca memória do marido.

Abraçada a mim, vi-lhe a desdita. Admitia haver velado de tal modo o retrato do Sr. Bonifácio, guardando-lhe severa fidelidade, que temeram-lhe os amigos a sorte. Instavam-na eles, aflitos, a receber a vida de volta, mesmo que para isto se expusesse ao opróbrio injusto. Nenhum argumento a convencera. Não tivesse eu surgido para apagar-lhe o luto, e nele estaria ainda mergulhada.

Pastora cultiva nessas horas a redondilha, manejando com desenvoltura os versos. Diz-me o que Conceição cala. Assim, à mesa, sorvendo a sopa, não furtava-me à fatalidade de compará-las em secreto juízo. De muito Pastora ganhava. Mas D. Inácia, ao passar-me depressa as travessas, não me deixa muito tempo a sós com tais pensamentos. À falta do que falar-me, preocupa-se Conceição com a sopa, se naquela noite não teria eu preferido uma simples canja de miúdos.

Vem-me à cabeça o ímpeto de pedir-lhe que só dirija-me a fala em casos de extrema necessidade. Contendo-me, porém, termino por sugerir-lhe a leitura. Far-lhe-ia bem o Dr. Macedo. A inocência de Moreninha pareceu-me sempre fagueira.

– E quer que eu lhe traga alguns títulos novos, recém-chegados de Portugal? Conceição ressente-se, desgostam-lhe certamente minhas palavras. Mas, discreta, alega falta de tempo para estes entretenimentos, a casa ocupa-lhe todas as horas. Carece Conceição do tempo que, Deus louvado, a mim, no cartório, está a sobrar. Talvez seja melhor assim. Há leituras que nos suprem com sonhos que a realidade mesmo não comporta. E se lá fosse Conceição ao seu encalço, teria que abater-lhe as asas. Não, não me permito contratempos domésticos. A vida tenho bem azeitada. Bastam-me as exigências de Pastora, implacável a qualquer atraso. Obriga-me a corridas que excedem de muito às minhas forças. Em compensação, se lhe chego no prazo, regala-me com o bom vinho do Porto e biscoitos amanteigados, mal retira a aldraba da porta.

Estes cuidados permitindo-me delicados ósculos na alvura dos seus pulsos, dali meço-lhe as batidas do coração. E quando estou avançado nas carícias, interrompe-me Pastora para que descreva-lhe a casa, não posso então esquecer um só objeto ao arrolar-lhe os bens. Precisa Pastora certificar-se que os objetos falariam por ela, mesmo se não mais vivesse entre eles, se ausentasse por alguns dias. Foi graças aos seus caprichos que atraíra-os a casa, tirava-lhes a poeira, havia-lhes enfim assoprado o que dizia ser sua última forma. A esta ideia, ela sempre se enternece.

Apesar do enlevo com que tece elegantes figuras com as palavras, e enrubescer quando de amor trata, muitas vezes na intimidade Pastora mostrou-se tão distraída quanto Conceição. Havendo eu que convocá-la de novo ao nosso festim, urgi-la a regressar à terra, só aqui encontrava-se a salvação. Nestes momentos, pede-me desculpas, há que entender, segundo ela, esta alma feminina que, até mesmo em frangalhos, teima em sorver da taça sua inexcedível dose de sonho.

Agora, todos nós à mesa, confiro os traços de Conceição. Distante assim, e talvez pelo vinho, ganham suas faces certo brilho. Mas, se lhe dissesse eu que ganharia viço com a pintura reforçada, rasgando um pouco mais o decote, não me devolveria sequer um olhar grato. Seu rosto filtra igualmente o desgosto e a ilusão. Tanto é o seu domínio que no meu velório não derramará lágrimas. Se acaso ama-me, Conceição nunca me confessou. Não lhe permite o pudor qualquer extravio. Alisa, sim, as minhas roupas e devolve-as já impregnadas de colônia. Por minha vez, recompenso-a com delicadezas, jamais voltei a casa sem me lavar antes, tratando de apagar marcas e perfumes que ela possa descrever com raiva e brios.

Uma coisa não pode ela, acusar-me de finório, destes que dilapidam o nome e o patrimônio comum. Não darei a Conceição outros motivos de queixa além dos que já tem. Os direitos que lhe assegurei, devem tranquilizá-la. Pode D. Inácia testemunhar a meu favor. Ela própria desfruta de invejável conforto, com que se regala toda. Às duas presenteio com toda sorte de adornos. Hoje mesmo, pela manhã, fiz chegar à Conceição precioso cartucho, destaca-se nele em ouro um cervo que o caçador persegue entre folhagens. Comprei-o no belchior vizinho ao cartório, custou-me pequena fortuna. Conceição levou a joia ao peito por instantes, largando-a depois sobre a cômoda, fez-me ver que oportunamente a usará. D. Inácia perdeu-se em elogios, alguns, suspeito, bem falsos. Em julho, fizemos cinco anos de casamento. Achei que a efeméride devia estender-se por toda a semana. Assim, diariamente, fiz-me presente na casa e no leito. E, na quinta-feira, quando jamais Pastora faltou-me, rasguei, diante de Conceição e D. Inácia, o bilhete do Lírico comprado especialmente para este fim.

– Fico em casa nesta data. Deixo o teatro para a semana entrante. Ele não me há de escapar.

Esparramado o papel picado pela mesa, queria-as subjugadas ao meu gesto. Vissem o meu empenho em agradá-las. Mas, para meu desgosto, D. Inácia pôs-se a lamentar. Considerava desperdício o meu feito, em vez de rasgá-lo, melhor teria sido adquirir mais dois bilhetes para irmos todos ao Lírico. D. Inácia tinha razão, mas sua proposta envolvia também certos riscos, não havia que estabelecer novo hábito, ou forçá-las à fantasia que é do teatro estimular. Constrangido por querer D. Inácia provar-me inábil nas coisas do coração, reagi firmemente. Com o sangue a subir-me às faces, expliquei-lhes que permanecer na casa, naquela noite, seria um regalo que unicamente Conceição estava em condições de apreciar.

Inácia simulou não haver ouvido. Punha-se de pé e sentava-se com impensada ligeireza. Até que trouxe-nos bolo de fubá e cafezinhos. Por sua vez, Conceição tomou do bastidor, apreciava o trabalho à distância da vista. Decidido, porém, a constrangê-las, chamei Conceição a mim, que me acompanhasse no licor, ia-lhe aquecer o corpo a doce quentura do pêssego no cálice. Vi-lhe o rubor, como se aplicasse carmim no rosto. E o transtorno até que dava-lhe certa graça. Despertou-me desejo de afagar-lhe as mãos cruzadas à altura do baixo-ventre. Se nisto pensei, mais depressa acariciei-a. Pelo olhar, Conceição forçava-me a desistir. Até levantou-se a pretexto que, não mais suportando, de chamar Suplícia, urgia que a mucama fosse ao boticário curá-la da enxaqueca.

– E dói-lhe muito? Falei-lhe algo pícaro. Em seu socorro, D. Inácia tomava-lhe da mesma mão que antes eu afagara. Querendo apagar as expansões de um esposo e que tanto doíam-lhe. Já no leito, debrucei-me sobre Conceição disposto a provar-lhe que as palavras à mesa se legitimariam em ato real. Conceição foi pronta na resposta. – Ah, Chiquinho, como chamava-me às vezes, que enxaqueca será esta, meu Deus!

Pastora recebeu-me indiferente. Como a podia ter abandonado quando mais me necessitava. Fez-me ver que de algum modo devia compensá-la pelos maus tratos. Ao pé da cama, lancei-me às carícias que há muito não nos devotávamos. E tanto haviam estas carícias se distanciado de nós que, agora revividas, encantavam Pastora. Encarecia-me a jamais esquecê-las, precisamente elas, mais que outras, acercavam-se do seu coração com veloz ardor. Eu via as horas e as minhas forças rapidamente extinguirem-se. E muito porque surgira-me, recém-chegada da terrinha, uma cachopa de cor trigueira, cabelos enrodilhados no alto da cabeça, olhar trocista, que havia me apresentado o escrevente juramentado Soares, sempre empenhado em agradar-me. Adivinha-me ele as fraquezas. E quem não as tem, Sr. Menezes. E tem o amigo razão. Melhor as deste tipo, que a bebida ou a prodigalidade. Estes, sim, vícios a que se atendem em grave prejuízo do lar.

A portuguesa Delfina parecia-se à Cleópatra da gravura que enfeita-nos a casa sobre o canapé ao lado do espelho. Quantas vezes não cobicei a rainha do Nilo, que a história e o tempo haviam-me roubado.

Não me teria ela escapado a passear pelo Jardim Público. Que aflições não me causariam esta mulher! Conceição parecia adivinhar que em seu seio nascia uma víbora. Certa vez protestou contra a presença daquelas mulheres, pois eram duas gravuras, uma próxima à outra, que melhor estariam num salão de barbeiro, a algaravia do local casando-se bem com elas.

Estranhei que soubesse descrever os logradouros masculinos, não a pensava ocupada com tais assuntos. Mas, alegou Conceição que servia-lhe a imaginação para cobrir certos vazios, sem falar na intuição a segredar à mulher o que, no recesso do lar, estava vedada de saber. A tais explicações, dei-lhe mostra de descontentamento, enveredava ela por caminho inconveniente. Ao perceber-me o desgosto, Conceição logo emendou-se. Era a primeira a considerar que jamais se conciliaria com os locais públicos e os salões mundanos, em ambos sobejavam o pecado e a soberba. Em casa, estava-se a salvo dos desmandos. Agradeci-lhe o senso correto e o recato, que também o caro Soares apreciava. Tanto que sempre buscou ele na voz um tom que, sem ofender-me, resumisse seus cuidados por ela.

– E como está D. Conceição a passar? Santa e prendada senhora ali encontra-se, Sr. Menezes.

Apesar das belas maneiras do escrevente juramentado, dele eu queria notícias de Delfina, a faltar-me aos encontros, só para eu padecer. Até que chegaram-me, por meio do constrangido Soares, a nossa Celestina, as palavras da rapariga, escritas no frontispício dum alfarrábio: ” se de mim nada consegues, não sei porque me persegues, constantemente na rua; sabes bem que sou casada, que fui sempre dedicada, e que não posso ser tua; lá porque és rico e elegante, queres que eu seja tua amante, por capricho ou presunção; eu tenho um marido pobre, que possui uma alma nobre, e é toda minha paixão. Rasguei as cartas sem ler, e nunca quis receber joias ou flores que trouxesses.”

Tratava-se de uma grande mentirosa, pois nem marido tinha. Só com propósitos vis carregara nas tintas, enquanto buscava com afã quem lhe montasse um sobradinho em São Cristóvão, queria-o com quintal e mangueiras frondosas. Encontrei-a quinze dias mais tarde. Sentia-me bem, naquela semana concedera-me Pastora tal ardor que podia agora resistir às atrações da portuguesa. Tirei-lhe a cartola e ela, a medir forças, devolveu-me o sorriso que há muito eu observava na Cleópatra da casa. Cheguei-me à Delfina.

– A que devo, senhora minha, a honra de tal sorriso?

Para meu espanto, e para não mais confiar em sua natureza cercada de mimos e pejos que mais próprios estariam num ramalhete, disse me:

– Não me vendo, nem me dou.

E afastou-se faceira, deixando-me no rosto sua fragrância jasmim. Quis segui-la. Exigir explicações. Temi, porém, que me repelisse, armasse escândalo. Um escrivão como eu, a quem certas damas favorecem, sem que por isto hajam vencedores e vencidos, não seria alvo de chacota e de injúrias, a passar por tal vergonha. Não estava disposto a aguentar as bernardices de uma rapariga.

Conceição adivinhou-me ferido, pois desdobrou-se em cuidados, como a tratar de um enfermo. Vi-lhe gosto na operação, a solidariedade de uma alma nobre. No jantar, além da sopa, descreveu outras iguarias. Já no quarto, pediu-me água, e que apagasse o candeeiro, naquela noite tinha pressa em dormir. Não sei porque, mas quis-lhe perturbar o sono.

Não ando bem de saúde. Só espero que não me acuda a ingrata apoplexia. E não estava longe da verdade. Pois andam-me passando certos percalços. Por qualquer cousa, a cabeça lateja-me, como se dela pendesse uma bola de chumbo. Nestas horas de aflição, Pastora tem-me afortunado com afeto, mostra-se grata com os regalos que lhe faço. Todos bem modestos, não sou quem se prodigaliza nestes casos. E certamente censuro aquelas que se inclinam e exigem o fausto. Devia-lhes bastar o afeto que se deixa na antecâmara. Pastora‚ sensível, alivia-me a cabeça com artes minuciosas, traz-me beldroegas da sua, chácara. E, logo restaurado, posso tirar da boceta o fino rapé inglês e levá-lo às ventas, provar-lhe a delícia.

A ameaça de que estava a ir-me muito breve não comoveu Conceição. Apoia-se na certeza de que, após minha morte, hão de restar-lhe alguns bens. A casa de Catumbi é um razoável legado. Apesar do gênio de Amélia, mais irascível que o meu, e dos desgostos que lhe terei causado, segundo o que dizia-me, não lhe sobrou remédio senão indicar-me único herdeiro. Ah! Como combateu-me a assiduidade junto ao teatro, aquela obsessão que a excluía sem piedade? Eu oferecia-lhe razões, não podia levá-la. À saída do teatro, aos locais impróprios, onde, contudo realizavam-se as melhores transações comerciais. Apoquentava-me Amélia aos gritos, a indicar-me frequentemente a soleira da porta. Suportei-lhe bem os ressentimentos, as inúteis lágrimas, em troca premiou-me com o sobrado, alguns títulos, o mobiliário, terrenos em Petrópolis, e as escravas. Um cabedal que sem dúvida folgou-me bem.

Inconformada, a família de Amélia pagou-nos assíduas visitas, cobrando-nos pitéus e bebidas fortes. Suportou-os D. Inácia até a noite em que cerrou-lhes a porta, comunicando pela janela que estávamos de saída para a novena, não era do seu feitio reservar hora para as obrigações sociais. Nogueira, porém, jovem primo de Amélia, pediu-nos hospedagem, mas benevolência também. Vivia em Mangaratiba, e estava a necessitar dos estudos avançados da Capital. Com ele, comovi-me, sabia-o capaz de honrar-nos com brilhante futuro na corte. Ponderei à D. Inácia o que nos custaria um menino que, aos dezessete anos, revelava cortesia e discrição. Por cima, seria para Conceição como um filho.

Tão tímido o Nogueira que, à mesa, afunda o rosto no prato, furta-se assim ao diálogo. Parece incomodado junto às mulheres. Um recato que vai-lhe bem, quando o temos como hóspede. Jamais confiaria a casa a um atrevido, pronto a magoar-me ao ferir Conceição. D. Inácia foi a primeira a querer-lhe bem. Faz questão de servir-lhe o prato. Gaba-se a sogra de restaurar as debilidades humanas quem lhe chega fraco, acode-se em suas palavras e em seus pratos quentes. Conceição, porém, tem resistido ao Nogueira nestes nove meses. Jamais a surpreendi num gesto afável, embora com ele tampouco seja rude.

Nogueira tem o gosto da leitura. Sempre com um livro entre os dedos, na faina de suspirar por eles. Certa manhã, sugeri-lhe a deixar os livros para trás, seguindo-me até onde encontravam-se certos prazeres viris. Pareceu não entender-me. Olhou-me como se estivesse a propor-lhe tarefa de que se envergonhasse mais tarde, quando o fato‚ que seu corpo atingia-me quase em altura. Deixei-o com fé que me buscasse um dia. Mas, jamais procurou-me. Ignoro agora se já abeberou-se nas delícias da vida.

Disse-me ontem Pastora: – Sinto-me só, Menezes, queria-o comigo na ceia de Natal. Fiz-lhe ver que não atenderia ao seu convite, talvez provasse de seus petiscos pela madrugada. Mas, primeiro vinha a casa. Não me furtaria ao encargo de cear junto aos meus. Tínhamos o hábito de bebericar a partir das seis, eu já vestido de modo a retirar-me após o repasto. O vinho casto, sempre o mesmo com que celebrávamos essas noites, ia sem pressa dispondo-nos para a fartura da mesa. Este ano contávamos com o Nogueira. Para ele será seu primeiro Natal na Corte. Não sei porque, mas, olhando-o agora, vi-o de repente sobranceiro, a tagarela como nunca, a fazer-se homem à minha frente. Esta sua exaltação anunciando-me que sua presença na casa brevemente seria incômoda. Não quero molestar-me agora com tais problemas. São estas horas de alegria. A única pressa que vou tendo‚ dar o Natal por encerrado, sempre a pretexto do teatro. Naquela noite, Pastora teria os seios quentes como uma castanha.

Uma única vez pediu-me Conceição que a levasse à missa do galo. Contrariei-a então com a desculpa que o fausto da cerimônia constrangia-me. Mas, que tinha permissão para ali ir na companhia da mãe. Desagradada, não voltou mais ao assunto. Entre garfadas, Nogueira revela-nos o que sabe da missa do galo, julgada soberba pela presença de respeitáveis figuras do Império. A oportunidade parecia-lhe preciosa, quando lhe estaria assegurada nova temporada na Capital?

Nada lhe disse. A leitoa pururuca, sobre a toalha adamascada, soube-nos como nunca. Destrincheia-a com o gosto de conhecer-lhe a anatomia. Com que prazer fartaram-me as fatias douradas, rabanadas, corrigiu-me D. Inácia. Saboreei-as já pensando em Pastora.

– E pensa assisti-la desacompanhado? Digo a Nogueira, enquanto Conceição lambe ainda a última iguaria. Tem apetite nesta noite, abusou até do vinho tinto. Quanto a mim, faltam-me quinze minutos para deixá-los.

– Estou ajustado com um vizinho. E, para tal, penso não dormir. Combinamos um encontro às onze e trinta. – Previno ao primo, porém, que todas as missas se parecem. É a mesma missa da roça. E muito ter a esperar até a meia-noite. Não lhe farei companhia e os de casa têm por costume recolher-se cedo. Veja, aliás, como encontram-se já sonolentas. Há, pois, de guardar vigília sem perder a missa. Não vá cair no sono sem assisti-la. Faço agora questão de recolher suas impressões pela manhã.

Como folga-me a alma ir de encontro à noite, tomar do seu perfume a vaticinar boa fortuna. Dentro da berlinda, hei de contar os minutos que me apartam de Pastora. Nogueira sorri-me. Também ele nunca me vira a falar-lhe tanto. A confessar-lhe que, rapazola ainda, havia festejado a mesma missa com igual ânimo.

– Peço-lhes licença. Faz-se tarde agora. Volto-me para Conceição, falo-lhe: – Não vai recolher-se, D. Conceição? Adotávamos tratamento cerimonioso nas noites de minha ausência. Ela aquiesce com a cabeça, mal ouço-lhe a saudação.

E já está a esgueirar-se pelo corredor, quando D. Inácia, que a segue sem ao menos haver-me dirigido um só olhar, volta-se a nós.

– Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo este tempo?

– Vou dedicar-me à leitura, D. Inácia.

Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de acomodar-se à mesa da sala de jantar, trazendo a si o candeeiro de querosene.

– Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é que vai ler até a sua missa do galo?

O primo levanta-se, acompanha-me à porta.

Dá-me o beneplácito, sem esquecer de acrescentar:

– Leio Os Mosqueteiros.

Ah, belo rapaz esse Nogueira!

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