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ELZA SOARES

A lacuna que a morte de Elza Soares, ocorrida nesta quinta-feira (20) deixa na música brasileira jamais será preenchida. Numa época onde quem não sabe cantar faz sucesso; onde quem paga mais aparece mais; onde os acompanhamentos musicais são produzidos pelo computador e o pior de tudo: num momento onde a maioria está satisfeita com a baixa qualidade (independente de estilo, modismo e o que for), Elza Soares é um modelo de artista e cantora completa, de qualidade, de atitude e de tantos outros adjetivos que aqui não caberiam. Fica o legado e uma ainda obra inédita a ser lançada. (Sérgio Monteiro – jornalista e Editor do jornal Tribuna sul de Minas) 

Leia abaixo 4 textos divulgados hoje em jornais pelo país e em redes sociais que definem quem é Elza Soares.

Tive uma única experiência musical com Elza Soares. O SESC Pompéia me convidou para ser o diretor musical de um show chamado Religare, não me lembro exatamente o ano. O show deveria ter o tema da ligação do homem com o divino através das religiões. Eu deveria escolher o repertório e os intérpretes. A única exigência que me fizeram é que Elza estivesse entre os intérpretes.
E assim foi. Escolhi cantores e cantoras, que foram Chico Cesar, Mariene Castro, Luciana Alves, eu mesmo, e a própria divindade Elza. Escolhi músicas que abordassem essa questão do divino, as quais o nosso cancioneiro é repleto, e as distribuí entre os cantores. Escolhi os músicos e escrevi os arranjos, e chegou a hora dos ensaios. Elza ficou para ensaiar no último dia. A ela coube Se Eu Quiser Falar Com Deus, uma das músicas mais lindas e profundas da existência, de Gilberto Gil. Caprichei na caneta, mas com parcimônia, porque tudo o que eu queria era uma moldura bem discreta para aquela voz penetrante.
Na hora do seu ensaio, Elza me ligou e me disse que não iria ensaiar, não era necessário, e que ensaiássemos na passagem de som, pouco antes do show. Fiquei verde por não respirar por vários minutos e não dormi na noite.
Na passagem de som, finalmente passamos a música. Ela, com enorme carinho, me disse: “seu arranjo está maravilhoso, mas que tal se tirássemos a flauta?” Não me opus, claro. Ensaiamos de novo sem a flauta. E ela: “Olha, talvez ficasse melhor sem o baixo e a percussão. Vamos deixar só com o piano e o violão?”. Concordei mais uma vez.
E assim seguiu. Antes de começar o espetáculo ela me chamou no camarim: “olha, acho que me sentiria mais confortável se eu fizesse só com o violão”. E eu, já entregue, longe estava de discordar.
Começou o espetáculo, tudo lindo. Chegado o momento da entrada de Elza no palco, todos os músicos saem, inclusive o violonista depois de lhe dar o tom. Ela fica sozinha e sem microfone ataca à capela Se Eu Quiser Falar Com Deus, só soando aquela voz que o Próprio lhe deu, cantando no seu tempo, na sua respiração, com silêncios entre as frases em que era possível se meditar sobre o sentido e a beleza de cada uma delas e se ouvir os corações pulsando, convivendo com a sensação de que o tempo não havia.
Em um momento da música, ela se senta e sai da luz. Termina a música, põe as mãos na cabeça e chora! Se tem algo que eu duvido nessa vida é se houve alguém ali presente que não tenha chorado junto, ou ao menos não tenha tido vontade de chorar. Eu chorei rios, porque vi ali uma mulher real conversando com Deus, aceitando a dor, comendo o pão que o diabo amassou, subindo aos céus sem cordas pra segurar.
Quem melhor que ela cantaria esses versos? Ali estava a cena completa, sozinha com Deus aquela mesma mulher que há décadas atrás havia dito em seu primeiro palco a Ari Barroso: eu venho do planeta fome!
Essa era a mulher que eu via ali com a alma despida: a mulher do fim do mundo! Já vi muita coisa linda nesses anos de palco, mas com certeza foi essa a mais bonita. Nunca mais eu a vi e hoje ela se foi. Viveu uma vida sofrida e maravilhosa, é uma das nossas maiores! Só há a agradecer. Vai em paz e obrigado pela lição sobre os silêncios, por me permitir o arranjo mais lindo que eu já fiz, ou melhor, que eu não fiz na vida!! (Sérgio Santos – maestro, músico, produtor musical) 

Texto para Elza
por Chico Buarque de Holanda

“Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.

Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu”.

Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.

Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em Língua com Caetano.
Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.

Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando Se acaso você chegasse, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.

“Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa”

O Carnaval 2020 promoveu oportuno resgate da música do gênero, com a volta de belos e criativos sambas de enredo. E ainda reverenciou uma personalidade marcante de nossa cultura popular, que há muito fazia por merecer. Homenageada pela Mocidade de Padre Miguel, a cantora Elza Soares emocionou e comoveu a avenida, foi aplaudida do início ao fim do desfile de sua escola e recebeu prêmio máximo como Personalidade do Ano.

Elza Soares partiu neste 20 de janeiro (mesmo dia da partida de seu grande amor, Mané Garrincha, ele em 1983). Cidadã do mundo, do subúrbio e da Zona Sul do Rio de Janeiro, da infância em favelas, com latas d´água na cabeça, ao sucesso explodindo mundo afora, recebendo elogios de quem conhece o seu ofício, Elza foi e é de todos. Já me disse em uma entrevista, para a revista Música Brasileira: “Degustei lágrimas como quem degusta vinho. Sei o gosto que elas têm”. Não foi apenas uma frase de efeito. Quem conhece um pouco de sua história sabe que ela comeu o pão que o diabo amassou, antes de brilhar tão lindamente na música.
Ainda cantava lindamente. Possuía recursos vocais personalíssimos, arrancando as sílabas da garganta como se quisesse estourar as veias do corpo. Parece que “rói do cóccix ao pescoço”, como no verso da música que Caetano Veloso escreveu para ela e que virou título de um dos seus mais belos CDs.

Outro que homenageou a garra da cantora, seu som em fúria, foi Chico Buarque. Lembrou o craque dos craques, na canção Dura na queda: “Apanhou à beca, mas pra quem sabe olhar/A flor também é ferida aberta/E não se vê chorar”.

Do velho 78 rotações ao CD, foram mais ou menos 100 discos gravados, no Brasil e no exterior. Nos EUA, resolveram examinar sua garganta e concluíram que as cordas vocais eram defeituosas. Um defeito perfeito. “Armstrong ficou deslumbrado quando viu que termino de cantar e falo normalmente, que esse som é puro efeito vocal. Ele me chamava de filha espiritual”, contou ela.

– Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa – disse na entrevista citada.
Diz o último verso da canção do Chico: “O sol ensolará a estrada dela…”. A estrada sempre esteve ensolarada. Elza Soares é a verdadeira guerreira da luz. Vá em paz. (Luis Pimentel)

“A COPA QUE NÃO COMEMOREI”

por ELZA SOARES

Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.

Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?

Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.

Estávamos trancados dentro de um apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.

Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.

Imagine o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa casa.

Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.

Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.

Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.

Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma -então fomos para Portugal por um tempo.

Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo -mas quem queria camisa da seleção naquela altura?

“Obrigado o…, cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil”, ele disse.

Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.

Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”.

 

  • os textos foram publicados em diversas mídias e veículos de comunicação e foram republicados na íntegra

 

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