SÓ PARA LEMBRAR
Academia Caxambuense de Letras - 18 de novembro de 2024
Só para lembrar
por: Esther Lucio Bittencourt- Acadêmica
Foi num tempo nem lembro data, mas os fatos. Zé Vicente retornava da Europa onde fora aproveitar o prêmio Molière, ganho com a peça “Hoje é dia de rock”. Leila Diniz, Arduino Colasantti estavam na fazenda do Zé Kleber, sempre, nas folgas da filmagem de “Como era gostoso o meu francês”.
Às noites, quando Zé Kleber não abria um restaurante que possuía em Parati, onde a cozinheira cantava com voz de Carmem Miranda, eu lia “Por que Lulu Bergantin não atravessou o Rubicão” . Olhava o rio correndo em baixo da janela do hotel. Era o Rubicão.
Uma árvore antiga caíra na fazenda do Zé por sobre o rio e a gente, digo a gente, a Leila, o povo todo, sentava lá em êxtase, olhando a ebulição da água, a pressa em nunca se repetir.
Minha bainha da calça descosturou, eu péssima com agulhas, tão sem importância, tive a ajuda do Zé Vicente que costurou. A gente sentava na varanda, nos quartos, onde cabia a conversa e depois eu retornava para os livros, desta vez era Hesíodo.
Minha cisma era que no Quilombo Independência um fio de arame que corria sobre o telhado de uma casa fazia o rádio ter som. Sem pilhas, sem eletricidade. Que eletricidade? Naquela altura de espaço, num quilombo de Parati. Ficávamos o Zé Kleber e eu esperando o povo ganhar confiança e conversar conosco. Era matéria para o JB, sobre o quilombo, que precisava fazer de qualquer maneira. Estava um tempo por Parati. Quem sabe a repressão esquecia de mim? Era o auge da ditadura militar.
Esta era a intenção.
Saí de casa deixando gente reclamando muito. “Pelo menos um carro o jornal podia mandar pra te buscar. Em vez de ir de madrugada nos ônibus.” É pra ninguém saber, eu respondia.
Combinei no fim do ponto com o motorista de parar lá em casa, menos arriscado. Bem que naquele tempo risco não tinha de bandido, só de milico. E ele parou; Marly não deixava que eu fosse. Levei uma estrofe de bolo . Pois toda a comida da casa era feita de tercetos, estrofes, quartetos, alexandrinos, épicos.
E eu lá no bem bom de Parati visitando as 365 ilhas da baía de Ilha Grande de cabelo colorido de preto, calças de riscas. Foi assim que aprendi no quilombo não ser preciso lei e ordem para que uma comunidade se relacionasse. Ela é intrínseca ao vivente. Sem chefe, sem polícia, todos iam cedo para o trabalho e plantavam, na colheita trocavam mandioca por feijão.
As festas sagradas eram misturas de latim com banto. Zé Kleber e eu esperamos durante dias e horas por Caintinias. E ele veio, era o mais antigo, mais vivido, com experiências e todos os ouviam e nós também. Evitava o contato maligno com o branco. Nós viramos exceção; ganhamos cor negra.
Antes que esqueça, conto uma vivência temendo desconectar da vida. Conto para eu mesma lembrar de como foi bom e de como é bom viver. Principalmente quando se caminha por um fio na beira do abismo. E sabe que nunca cairá por ter as medidas , talvez das mãos amigas.
Anotações:
O prêmio Molière foi criado pela Air France e extinto em 1994. Era concedido a melhor peça e a de José Vicente, ” Hoje é dia de Rock” recebeu o prêmio em Paris. José Vicente é da cidade de Ventania em Minas Gerais.
” Como era gostoso o meu francês” é um filme dirigido por Nelson Pereira de Santos.
Academia Caxambuense de Letras – novembro de 2024