Cultura e Lazer

CRÔNICA: Aceitando o chamado

Kerley Carvalhedo

Desde cedo aprendi quão difícil é falar de religião, porque ela sempre se apresenta como um problema. O assunto Deus e religião é muito incômodo e delicado; embora, religião e Deus sejam coisas distintas.

Quando menino, lembro-me da minha mãe me levando à igreja. Em casa, ensinava-me acerca do Cristo, o Supremo Autor do universo. Nada disso adiantou, nada me fez continuar em sua religião. À medida que eu crescia, mais distante do mundo cristão eu ficava. Talvez fosse impossível não me decepcionar com a religião, apesar de manter minha fé em Deus, o inevitável aconteceu: abandonei a fé.

Por muitos anos considerei-me agnóstico. Viver neste estado foi mais confortável do que crer ou não crer em algo ou alguma coisa. Em outras palavras: mantive-me em cima do muro. Essa, sem dúvida, é uma forma muito humanística de ver o mundo.

Muitos questionamentos, inúmeras perguntas perturbadoras, e a inquietante falta de respostas.

Parte da minha inspiração vem da perplexidade de existir, do assombro que é perceber-se existindo. A sensação é de esquisitice e estranheza. Não bastasse isso, ainda temos que dar uma resposta para esta vida.

As perguntas básicas que geram as filosofias, e que geram as religiões é o que gera também a arte: Quem eu sou? De onde eu vim? Para onde eu vou? Toda arte é uma tentativa de resposta a essas perguntas. As religiões e a filosofia tentam responder isso de maneira mais eloquente. Pensar nos faz refletir, e refletir nos traz sofrimentos, algumas vezes. Não existe pessoa que passe a vida sem sofrer. Considero o sofrimento importantíssimo, ele é condição de mais consciência.

Todos nós temos motivos suficientes de sofrimento. Sofremos pela nossa condição humana, pela finitude da vida, pelas nossas precariedades; sofremos por envelhecer, por adoecermos, pelas chegadas e partidas. A vida humana é uma fonte de sofrimento, uma Via Crúcis, um vale de lágrimas.

Embora muitas pessoas passam pela vida fugindo da dor, e fugir de dor é perda de tempo, ela estará presente na nossa existência a qualquer momento. Esse absurdo que é a dor e a sua finitude acompanha a humanidade desde sempre. O homem incessantemente procura respostas para suas questões existenciais, porém muitas delas continuarão misteriosas e incompreensíveis ao intelecto humano.

A vida terrena sem a finitude seria insuportável. O lado bom é que um dia tudo acaba para nós.

Todo crente passa pela dúvida. Pelo deserto da fé. Os grandes místicos passaram desertos inimagináveis, por crises religiosas, crises de fé. Grandes homens e personagens bíblicos também tiveram seus momentos de falta de fé. Até mesmo os mais dedicados cristãos já passaram por esta secura. Santa Terezinha dizia: “Estou padecendo dúvidas de fé, todavia, continuo fazendo as obras da fé.” Isso deixa claro que, mesmo com todos os percalços da dúvida, nela existia uma fé que a levava adiante.

Há muitos anos, numa madrugada, sentado na janela do meu quarto, observando o céu pontilhado de estrelas cintilantes, pensei num universo ausente de um Deus real. Um Deus fora da imaginação dos homens. Por um instante – não mais que isto: um instante apenas – comportei a sensação mais solitária dentro da minha alma naquela noite escuríssima. Não era uma solidão somente, era a solidão mais profunda que já pude sentir em toda minha vida. Mais que um exílio: um assombro.

Por muitos anos vivi assim, com esse sentimento de orfandade de um Ser maior. A partir do nosso nascimento começa uma construção particular para cada um de nós. A nossa moral, personalidade, comportamentos, valores e princípios são moldados conforme o meio em que estamos inseridos. O ser humano nasce incompleto, há lacunas que vão sendo preenchidas no seu devido tempo. A lacuna Deus estava vazia em minha vida. Nada a preenchia.

Eu comparo essas construções com as misteriosas catedrais góticas da Idade Média, feitas entre os séculos XII e XIV, que desafiam a modernidade pelas suas suntuosas belezas arquitetônicas. Havia nessas construções os arcos ogivais, que dividiam o peso da abóbada central sobre vários pontos de sustentação. Mas, para manter a construção em pé, precisava-se de uma pedra no meio do arco chamada Pedra Angular. Fiz o meu caminho, minhas escolhas, tomei minhas decisões, fiz minha construção, mas faltava-me esta pedra, que hoje chamo de Deus.

Neste processo de retorno, de reflexão profunda; retorno ao cristianismo com a certeza dos meus eventuais fracassos, com minhas incertezas, mas, no fundo, acreditando no milagre de existir, que está além da capacidade lógica.

Regressei; no entanto, sem fanatismo religioso. Acredito no Cristo, no inominável, no sublime. Sofro com os mesmos desatinos da minha condição humana; entretanto, agora é possível sofrer em paz. Já dizia o apóstolo Paulo: “A paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente”. Ninguém explica esse mistério. Chamo assim porque é mistério o transcendental.

Ainda que as filosofias, ciências, descrenças ou qualquer outro cânone me prove o contrário sobre a existência de um Deus, prefiro descansar no oásis e esperar o regresso para casa. Deus é um absurdo. Hoje O sinto nas águas tranquilas que escorrem nos pequenos riachos, na brisa que sopra, no fim de tarde, no poente do sol, na natureza e, às vezes, até no mar bravio.

Tudo é breve, tudo é passageiro. Nosso tempo é pouco e a vida termina logo ali. Como expressou-se Clarice Lispector próximo à sua morte, com sua caligrafia já trémula escreveu: “Eu sei que Deus existe”. “Quando acabardes este livro chorai por mim mais um aleluia (…) No entanto eu já estou no futuro”. “Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus!” Este último era seu desejo. E também é o meu.

 

Kerley Carvalhedo é cronista e escritor. É membro correspondente da Academia Caxambuense de Letras. Começou sua carreira no jornalismo em 2011 no jornal ‘DiárioRS’. É autor de livros, entre eles o livro de crônicas “K Entre Nós” sua obra mais conhecida.

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